Compra da Gol pela Azul pode aumentar preço de passagens e concentrar rotas
A possível compra da Gol pela Azul é vista com preocupação por especialistas do mercado. Em um cenário possível, diversos aeroportos passariam a ter a operação de apenas uma única companhia, praticamente.
Por outro lado, o valor médio das passagens pode aumentar e a quantidade de assentos ofertados pode cair. A decisão da fusão entre as duas empresas ainda teria de passar pelo crivo de órgãos do governo, justamente para evitar problemas envolvendo a concorrência e que podem afetar diretamente o consumidor.
Menos rotas e preços mais caros
Para Márcio Holland, professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 2011 e 2014, essa exposição de um mercado gigante como o brasileiro a um risco do tipo incomoda. O profissional realizou um estudo sobre os possíveis cenários em caso de fusão.
Para Holland, um dos problemas trazidos com a concentração não é apenas o mercado como um todo ficar na mão de uma única empresa, mas um aeroporto ou uma rota apenas passarem a ser operados exclusivamente pela nova suposta companhia. Seria o caso dos aeroportos de Confins (MG), Recife (PE) e do Galeão (RJ), que teriam, respectivamente, 88%, 84% e 81% de seus voos apenas na mão da nova empresa.
"Se a empresa que operar de maneira majoritária um desses aeroportos passar por uma séria dificuldade, há o risco de a população desses locais enfrentarem um grande transtorno", diz Holland.
Como a Azul tem um modelo de negócios diferente do da Gol, a tendência é que o valor das passagens seja aumentado, diz o professor. O valor médio das passagens aéreas no Brasil em 2023 foi de R$ 717 na Azul, R$ 606 na Latam e R$ 576 na Gol, de acordo com dados da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Isso mostra que, como a Azul opera com tarifas médias 24% acima das da Gol nas 96 rotas que concorre com a Gol, a possível fusão resultaria em um elevado aumento no valor das passagens, afirma Holland. Ao mesmo tempo, haveria uma redução no número de assentos, justamente para evitar a sobreposição de voos nos mesmos trechos, diz o economista.
O estudo professor da FGV ainda destaca que os funcionários da Gol poderiam ser demitidos coma fusão, e que os ganhos e aumento da eficiência econômica com a fusão se limitariam a um aumento de receitas para a Azul advindo de enxugamento de operações e de número de funcionários, sem repasse para os consumidores.
Em 2023, Latam teve 37,8% da demanda no mercado doméstico, enquanto Gol teve 33,3% e Azul ficou com 28,4%. A fusão representaria mais de 60% da demanda nacional na mão de apenas uma empresa.
Segundo Holland, nos últimos 20 anos, as duas primeiras empresas líderes do mercado nunca haviam concentrado mais do que 76,6% do mercado.
Aumento já aconteceu antes
No período posterior à compra da Webjet pela Gol, em 2011, também houve aumento no valor das passagens. De acordo com estudo realizado pelos economistas Fernando Daniel Franke e Guilherme Mendes Resende, do Cade, a operação não foi tão benéfica para o consumidor.
Antes da aquisição, as duas empresas disputavam passageiros diretamente entre si em alguns trechos de voos. Segundo os dados apontados na documentação, houve um aumento de 7,68% a 16,42% no valor das passagens em rotas onde as duas concorriam anteriormente.
À época, a medida foi criticada. Em 2012, em uma audiência no Senado, Graziella Baggio, então diretora do Sindicato Nacional dos Aeronautas, questionou a transação. "Se a Webjet possuía dívidas, por que se adquiriu a empresa? Se não era viável, por que se comprou a empresa? Ou se comprou para fechar a concorrente?", afirmou à época.
A ex-senadora Ana Amélia, então no PP-RS, também questionou a motivação da venda da Webjet, já que a empresa possuía aeronaves mais antigas. "Se aviões velhos consomem mais e podem até representar riscos, qual o interesse na compra da empresa?", disse a política.
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Quero receberA junção das duas empresas resultou na demissão de 850 funcionários da Webjet e em um setor mais concentrado.
Fusão benéfica para a Azul
A Azul seria fortemente beneficiada pela fusão com a Gol, avalia Holland. Isso poderia fazer com que a empresa fugisse de uma reestruturação ou de um eventual pedido de recuperação judicial, como a Gol e a Latam (que saiu do processo).
As ações da Azul chegaram a ser negociadas por R$ 21,86 no fim de junho de 2023. Em 20 de junho de 2024, esse valor chegou a R$ 8,13, tendo chegado ao valor de R$ 62,41 em janeiro de 2020. Caso não haja a fusão, a perspectiva do economista é a de que a Gol consiga mudar seu planejamento de maneira eficiente e sair da recuperação judicial em 2025.
Poucos sempre dominaram
O setor no Brasil sempre foi dominado por um pequeno grupo de empresas aéreas. Entre as décadas de 1940 e de 1960, o cenário nacional era dominado, majoritariamente, por Panair (fechada pela ditadura militar), Varig, Cruzeiro, Real Aerovias e Vasp.
No início dos anos 2000, quem quisesse voar dentro do Brasil teria de escolher, praticamente, entre Varig, Vasp, Tam e Transbrasil. Atualmente, Latam (fusão entre a chilena Lan e a brasileira Tam), Gol e Azul detêm a maior parte do mercado.
Entretanto, apenas duas empresas dominando mais de 90% dos voos comerciais do Brasil não é algo tão confortável, ainda mais pelo fato de a única concorrente forte com a possível nova empresa formada pela fusão de Gol, a Latam, tem suas operações sediadas no Chile.
Tribunal julgará possível nova empresa
A fusão das empresas ou compra da Gol pela Azul teria de ser avaliada e julgada pelo tribunal do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que compõe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Essa análise é importante para evitar a concentração excessiva nas mãos de apenas um grupo econômico ou a formação de um monopólio, que tende a afetar negativamente os consumidores.
Segundo a advogada Luciana Martorano, sócia da área concorrencial do Campos Mello Advogados, essa operação irá impactar em um dos setores mais concentrados e com maiores barreiras à entrada de concorrentes no Brasil, o de transporte aéreo de passageiros e de cargas.
"Em termos de análise econômica da operação, a Superintendência Geral do Cade não avaliará a fatia de mercado absoluta das duas empresas, mas, sim, as suas participações de mercado consideradas dentro da definição econômica de mercado relevante de produto e geográfica aplicáveis ao setor", diz a advogada.
Assim, o órgão não analisaria apenas a participação total da nova empresa no mercado, mas, se a junção das rotas oferecidas poderia causar problemas concorrenciais. Nesse quesito, a advogada aponta que o portfólio oferecido pelas duas empresas são muito mais complementares do que sobrepostos.
Enquanto a Gol tem presença relevante nos principais aeroportos do país, a Azul possui maior capilaridade em linhas regionais e em aeroportos de menor porte
Luciana Martorano, Campos Mello Advogados
Luciana descarta uma possível sanção se houver a fusão. "Não há que se falar em sanções nesse caso, pois num cenário de fusão não há, geralmente, prática de condutas anticompetitivas. Em atos de concentração, o Tribunal do Cade apenas reprova a operação ou adota a aplicação de remédios estruturais/comportamentais", diz a advogada.
O UOL procurou as três empresas, Azul, Gol e Latam. Todas disseram que não iriam comentar sobre a possibilidade de fusão e nem sobre os riscos de aumento de preços e de diminuição na quantidade de assentos oferecidos.
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