Atleta paralímpico fala de rotina em aérea: 'Deficiência não me define'
Não é superação, é treino. Essa frase costuma vir à tona quando se fala de esportes paralímpicos.
Por trás dela está um sentido muito importante: o de que as pessoas com deficiência podem se destacar em todas as áreas da vida, incluindo nos esportes.
Um exemplo disso é Davi Berto, despachante técnico de voo na companhia aérea Azul. Aos 28 anos, ele desponta como um dos talentos do halterofilismo no Brasil, e, mesmo não participando dessa edição da Paraolimpíada em Paris (França), mantém a meta de um dia representar o Brasil nos Jogos.
'Deficiência não me define'
Davi conta que sua condição é intrínseca à sua história. Entretanto, em suas palavras, "a deficiência não me define", ou seja, ela é parte de sua vida, mas ele não vive em função dela.
Veja a seguir os principais trechos da conversa com Davi:
UOL: Quando você descobriu sua deficiência?
Davi Berto: Quando eu tinha seis anos, eu sofri uma queda. Durante o tratamento, meus pais buscaram um diagnóstico para entender por que eu sentia tantas dores. Após um tempo, fui diagnosticado com uma patologia rara, a doença de Perthes [também conhecida como osteocondrose juvenil do quadril e da pelve], que prejudica o fluxo sanguíneo na região e causa sequelas na mobilidade.
UOL: Você tinha compreensão do que aconteceu à época?
Davi Berto: Para uma criança é muito difícil entender aquele cenário. Então, eu comecei a desbravar esse fato de ter de me adaptar com aquilo. Embora os médicos dissessem que era preciso repousar, eu ia contra isso, já que gostava muito de esportes. E não me arrependo disso, porque eu aproveitei o que tinha de aproveitar. Se eu ficasse em repouso, talvez não tivesse curtido tanto aquela fase, então, eu consegui aproveitar bastante a minha infância.
UOL: Em que momento você entrou de vez no mundo dos esportes?
Davi Berto: Por volta dos 12 anos eu conheci um local onde se praticava o basquete paralímpico, na cadeira de rodas mesmo. Naquela época, eu praticava apenas de maneira recreativa. Quando a gente se reunia e fazia o treino, eu achava muito legal. Foi a primeira vez que eu me senti incluído. Você não vê tantos deficientes juntos geralmente. Você é um ou dois. Mas, no esporte, você se vê incluído, e foi naquele espaço que eu me senti acolhido.
UOL: Qual foi o impacto disso em você?
Davi Berto: Foi muito positivo. Você termina vendo que a limitação e a deficiência são apenas detalhes na vida da pessoa. Se havia uma limitação em alguma coisa que eu precisava fazer, acabava me adaptando, fazendo de outra forma. No dia a dia, termina passando batido. Chega uma hora que você não percebe mais que tem uma limitação.
UOL: Quando você entrou para o esporte de alto rendimento, no caso, o halterofilismo?
Davi Berto: Por volta dos 14 anos eu comecei a treinar para melhorar o condicionamento e por uma questão de estética mesmo. Nos anos seguintes, conversando com um amigo, ele falou do halterofilismo. Ele perguntou se eu queria tentar e que haveria uma competição no Rio de Janeiro pouco tempo depois. Fui com a cara e com a coragem, e fui desclassificado.
UOL: Por quê?
Davi Berto: Eu ainda não conhecia as regras, que são um pouco diferentes. Eu também não tinha o traje oficial, e acabei pegando emprestado com outra pessoa que eu não conhecia. Fiz os três movimentos, e nenhum foi válido. Aí, quando eu voltei para São Paulo, voltei com o 'sangue no olhar'. Estava determinado a conseguir e comecei a treinar com foco.
UOL: Desde então você treina constantemente?
Davi Berto: Eu parei durante a pandemia. O último campeonato que eu tinha participado foi em João Pessoa (PB) em 2019. Voltei ano passado [2023] a treinar e já fiquei em sexto na classificação geral do Brasil. Hoje, minha marca é de 137 kg no supino, mas só os dois primeiros colocados se classificaram para as paraolimpíadas. O campeão mundial da nossa categoria é um chinês cadeirante, e ele consegue levantar 236 kg. Tem muito cara bombado em academia que não consegue isso [diz aos risos].
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Quero receberUOL: Qual sua meta para o futuro?
Davi Berto: Quero um dia estar na Azul como um tripulante [forma como a empresa chama todos os seus funcionários] e representar a seleção brasileira em uma paraolimpíada. Eu acredito que essa seria uma grande realização. Sair daqui e ser um atleta é um detalhe. Mas ser um atleta e ter uma carreira na empresa seria algo muito legal. Não sei se eu vou alcançar isso e qual o sacrifício que tem que ser feito para alcançar esse objetivo, mas é isso.
UOL: Trabalhar além de treinar tem quais benefícios?
Davi Berto: Depois que conheci a aviação e comecei a trabalhar na Azul, a primeira coisa que pensei foi em conciliar com o esporte. Eu já gastei muito dinheiro com passagem, 'enforquei' muito cartão de crédito [lembra aos risos]. Os atletas de alto rendimento que eu conheço, que são atletas de ponta, têm algum tipo de outra ocupação. Não é uma coisa que eu me vejo fora. Eu gosto da aviação.
O dia a dia no trabalho
Natural de Mauá, Davi hoje vive em Barueri (onde fica a sede da Azul) com a esposa e suas duas crianças. Ele trabalha no CCO (Centro de Controle Operacional), exercendo a função de despachante técnico de voo.
Esses profissionais são responsáveis por analisar o peso e balanceamento das aeronaves para que o voo ocorra sem problemas. Essa é uma função primordial, tendo em vista que a distribuição das cargas dentro do avião são fundamentais para mantê-lo equilibrado durante o voo.
Atualmente, Berto está estudando para evoluir na carreira, além do esporte. Ele pretende prestar prova junto à Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para obter a carteira de despachante operacional de voo.
Esses profissionais são os responsáveis técnicos por analisar, além do peso e balanceamento, as rotas, meteorologia e outras informações relacionadas aos voos e repassá-las aos pilotos. Essa função é fundamental em empresas aéreas, e requer um nível de especialização elevado, além da habilitação reconhecida pela agência para o seu exercício.
Não tem como colocar o fator deficiência de escanteio. Faz parte da minha vida. Poderia dizer que não quero fazer algumas coisas e colocar várias desculpas, mas eu preferi fazer diferente. E, se isso serve como um ponto de comparação positiva, beleza. A deficiência é um detalhe. Importantíssimo, mas um detalhe. Tem de ter essa leveza na conversa
Davi Berto, da Azul
Como é o esporte?
Davi explica que o halterofilismo paralímpico tem leves diferenças do bench press, como é conhecida a prática. O banco onde os atletas se deitam para levantar o peso é maior, e há a possibilidade de se prender os membros inferiores para garantir uma melhor estabilidade durante a prova.
O movimento também é realizado de outra maneira. De acordo com explicação do CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro), o atleta deve suportar o peso inicial com os braços estendidos. Após o comando do árbitro, ele deve descer a barra até encostar no corpo, realizando uma parada. Em seguida, a barra deve ser levada à posição original, concluindo o movimento.
Competem atletas dos gêneros masculino e feminino com deficiência física nos membros inferiores (amputados e lesionados medulares), de baixa estatura e com paralisia cerebral. São dez categorias no total, e elas levam em conta o peso corporal.
Cada atleta pode realizar três tentativas. O maior peso levantado em um movimento é considerado o resultado.
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