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Como a guerra comercial entre EUA e China pode afetar o Brasil

Luiza Duarte

De Hong Kong para a BBC News Brasil

07/07/2018 17h52

Tarifas americanas sobre US$ 34 bilhões em produtos chineses entraram em vigor na última sexta-feira (6), sinalizando o início de uma guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo. A tarifa de 25% aplicada pelos Estados Unidos provocou retaliação imediata da China.

O país asiático impôs uma sobretaxa idêntica sobre 545 produtos americanos, que também somam um total de US$ 34 bilhões. Foram afetados pela medida alguns dos principais produtos de exportação americanos, como soja, carne de porco, frutos do mar e veículos elétricos.

Outra bateria de tarifas chinesas, ainda sem data para vigorar, vai atingir mais US$ 16 bilhões em produtos americanos, dessa vez afetando exportações de petróleo bruto, gás natural e alguns refinados de petróleo. As hostilidades no plano comercial entre as duas potências afetam outros países, como o Brasil.

No atual contexto de economias integradas em um sistema de comércio multilateral, mudanças nos preços, reduções ou aumentos de produção, fechamentos ou deslocamento de fábricas ou ainda a pressão para redirecionar produtos para outros destinos geram impactos diretos nos parceiros econômicos da China e dos Estados Unidos.

Relação com o Brasil

Embora o Brasil tenha um superávit comercial com a China, principal parceira econômica do país, o comércio exterior reproduz uma dinâmica histórica: o Brasil exporta commodities e importa manufaturados.

Os chineses compram produtos como minério de ferro, açúcar, celulose, carne bovina e de frango. Mas a soja é a principal mercadoria brasileira vendida para a China: representa 43% das exportações do último ano.

As exportações de soja do Brasil para o mercado chinês representaram, em 2017, mais de US$ 20 bilhões, de acordo com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).

Já os EUA importam sobretudo aviões, semimanufaturados de aço e alumínio e petróleo bruto do Brasil. As exportações brasileiras para os americanos movimentaram US$ 26 bilhões no ano passado, segundo dados do MDIC. O valor equivale a um pouco mais da metade do que é gerado pelas exportações nacionais que seguem para a China.

"O ponto negativo é que essas tensões podem desacelerar o crescimento global, o que poderia prejudicar os mercados emergentes, tanto em termos de exportações, quanto em relação ao crescimento do investimento estrangeiro", alerta Penelope Prime, diretora do Centro de Pesquisa da China na Universidade do Estado da Georgia (EUA).

Disputa anunciada

Desde a campanha presidencial, Donald Trump vinha prometendo que colocaria a "América primeiro" e afirmando que a China era o inimigo a ser combatido para devolver empregos aos americanos.

Em visita a Pequim no ano passado, Trump insistiu que as regras comerciais precisavam ser reajustadas para equilibrar o comércio entre os dois países. Já o presidente chinês, Xi Jinping, um defensor da globalização, garantiu que a China iria se abrir para empresas estrangeiras.

O que dizem os EUA

Trump acusa a China de adotar práticas desleais, como o roubo de propriedade intelectual de companhias americanas. O déficit comercial dos Estados Unidos com o país chegou a US$ 375 bilhões no ano passado.

A China vê as medidas protecionistas americanas como "um ataque" que ela precisa revidar para se proteger e alega que os americanos começaram "a maior guerra comercial da história".

Nos últimos meses, os dois países entraram em uma crescente disputa comercial. Os EUA passaram a aplicar medidas contra a China, além dos recursos dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Anunciaram tarifas de importação contra produtos chineses e restrições de investimento, que o governo chinês vem retaliando.

A Casa Branca quer reduzir em US$ 100 bilhões o déficit de sua balança comercial com a China e anunciou em março taxas sobre o aço e o alumínio, ação que também afetou os exportadores brasileiros. Em resposta, Pequim taxou mais de cem mercadorias americanas, como carne de porco, frutas e nozes, tubos de aço para a indústria do petróleo e etanol.

Em seguida, os EUA divulgaram uma lista de 1.300 produtos chineses alvo de tarifas de até 25%, itens que somam o equivalente a US$ 50 bilhões em importações da China.

Para Louis Chan, diretor de pesquisa do Conselho de Desenvolvimento do Comércio de Hong Kong (Hong Kong Trade Development Council, HKTDC) na China, a chamada "guerra comercial" não envolve só os dois países.

"O que os EUA estão fazendo é algo unilateral contra chineses e contra outros aliados, como União Europeia, México, Argentina e Brasil. Países que costumavam ser parceiros de comércio e investimento", afirma.

"Na medida em que o Brasil e outras economias exportam produtos em competição com os EUA, as tarifas chinesas sobre esses produtos devem aumentar as exportações do Brasil e desses países, a exemplo da soja", diz Prime, da Universidade do Estado da Georgia.

Perdas no aço

A guerra comercial será cíclica, avalia Cui Daiyuan, professor de economia na Universidade de Xangai, na China. "O Brasil também pode ser afetado pelo protecionismo dos EUA, embora ganhe no curto prazo com o desvio do fornecimento de commodities".

A sobretaxa aplicada por Trump sobre o aço afetou diretamente as siderúrgicas brasileiras. O Brasil é a segunda maior fonte de aço para os EUA, as vendas para o país representam um terço das exportações brasileiras do produto e agora estão sujeitas a uma nova tarifa de 25%.

Mesmo que China e EUA cheguem a uma trégua, Chan reforça que o governo chinês tem trabalhado muito bem com o Brasil e outras economias emergentes. Para o economista chinês, uma mudança na cadeia de suprimentos mundial está em curso, gerando ganhadores e perdedores.

"Mesmo sem a guerra comercial, haverá alterações nas relações entre as economias emergentes. A chamada batalha de tarifas vai estimular esse processo e fazer com que se torne uma realidade muito mais rápido", avalia.

Benefício?

Chan acredita que a disputa com Washington vai servir para aproximar mercados emergentes, como a cooperação Sul-Sul. "Se você descobre que seus fornecedores não são de confiança, no sentido que as políticas deles podem mudar da noite para o dia, então, provavelmente, você vai procurar outros parceiros mais confiáveis", explica.

Mas o conflito pode durar pouco. Gustavo Oliveira, geógrafo e cientista político no Swarthmore College, na Pensilvânia (EUA), acredita que os dois países devem chegar a um acordo sobre essas questões tarifárias em meses.

"O que está acontecendo é um realinhamento, onde você tem menos exportação dos EUA para a China e mais exportações do Brasil e de outros países para a China."

Para Marcos de Paiva Vieira, professor de economia da Universidade de Tecnologia de Cantão, o Brasil pode explorar a situação de forma positiva.

"É um momento para se aproveitar a disputa, em todos os seus aspectos, para buscar mais negócios e investimentos. Sendo pragmático, o Brasil deve manter-se equidistante, abrindo-se para as investidas dos dois lados. Não há situação mutuamente excludente nas oportunidades de negócios comerciais, de fusões e aquisições e investimentos estrangeiros."

O especialista aponta que o lucro com o aumento da venda da soja brasileira, para compensar a diminuição do fornecimento americano, ajuda a trazer um resultado favorável na balança comercial e gera divisas.

Pior cenário

Apesar da vantagem inicial, William Jackson, economista especializado em mercados emergentes da consultoria Capital Economics, acredita que o Brasil pode ser atingido de outras formas.

"Primeiro, uma deterioração mais geral do cenário, causada por preocupações comerciais poderia enfraquecer o real, aumentando a inflação. Segundo, o Brasil estaria vulnerável se os EUA começassem a impor tarifas amplas sobre alguns bens específicos, como aeronaves. Por último, se a guerra comercial fizer a economia chinesa desacelerar, isso pode fazer com que os preços das commodities que o Brasil exporta diminuam."

Para a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), a guerra comercial é uma briga de elefantes, onde a grama é destruída e todo mundo sai perdendo.

Um estudo do órgão feito com 124 países mostra que no pior cenário, o de uma guerra comercial envolvendo todas os países do mundo, as tarifas médias aplicadas às exportações brasileiras poderiam passar dos atuais 5% para 32%.

O que diz o governo

O ministro brasileiro da Agricultura e um dos maiores produtores de soja do Brasil, Blairo Maggi, disse em entrevista à agência Reuters em Paris que teme que a maior demanda externa por soja nacional vá pressionar os preços locais e prejudicar a competitividade do Brasil. A dinâmica pode se reproduzir com outras commodities que o Brasil exporta para China.

Segundo Maggi, o país ganha no curto prazo, mas no médio e no longo prazo, a forte demanda da exportação pode ser um problema, já que o Brasil é um grande produtor de animais e o setor depende da soja nacional para ração.

A soja é o principal produto agrícola que os EUA mandam para a China e corresponde a quase 10% das exportações do país. Com Pequim boicotando parte da soja americana, o agronegócio no Brasil teve lucro alto na safra passada.

No último ano, a China importou, ao todo, 97 milhões de toneladas de soja, o equivalente a quase o total do consumo da produção brasileira, 119 milhões de toneladas, segundo a Embrapa, e da americana, que soma 119,5 milhões de toneladas. Os chineses são os maiores importadores do produto no mundo.

Há uma década, 38% da soja que entrava no mercado chinês vinha dos EUA e 34%, do Brasil. Hoje, 57% da soja que abastece o país asiático vem de lavouras nacionais, segundo dados da Administração Geral da Alfândega da China.

China sem EUA?

Gustavo Oliveira explica que China não pode contar com a soja brasileira para substituir a americana, já que o Brasil direciona grande parte da produção nacional (43 milhões de toneladas) para alimentar o mercado doméstico. A exportação brasileira sofre com a instabilidade política, como demonstrou a recente greve nacional de caminhoneiros.

Além disso, a China importa quase dois terços da produção mundial de soja. "Brasil e EUA exportam cada um mais de um terço e todos os outros países somados são responsáveis por menos de um terço.

Tirar os EUA ou o Brasil da equação basicamente significa ter que pegar toda a soja do resto do mundo e toda a soja do Brasil para atender ao mercado chinês. Todos os outros importadores, fora a China, teriam que importar exclusivamente dos EUA.

Essa é uma situação que não é realística, por várias questões logísticas, de mercado, de contrato", sinaliza o pesquisador.
Modelo de desenvolvimento

Para Oliveira, da Swarthmore College, pensar sobre o impacto da guerra comercial em uma análise restrita ao agronegócio é pressupor que tudo aquilo que favorece o setor é bom para o país.

"Não é tão simples assim. Essa conversa tem se dado no âmbito de que o agronegócio, a siderúrgica e a mineração brasileira são o equivalente ao interesse do Brasil. Isso é equivocado", critica.

"Uma grande crise para o agronegócio brasileiro pode ser uma coisa boa para milhares de famílias sem terra, para milhões de pequenos agricultores e para diversos outros setores da sociedade brasileira que têm uma visão de desenvolvimento distinta do agronegócio", Oliveira avalia de Pequim, em entrevista à BBC News Brasil.

O pesquisador alerta que o atrito entre China e EUA evidencia como o Brasil está vulnerável, sendo um grande exportador de produtos agrícolas e minérios. "Fica muito exposto a avanços e retrocessos de negociações entre Pequim e Washington, onde as empresas ou o Estado brasileiro nem sequer têm peso. O Brasil está refém de um modelo neocolonial."

Sobre o fato de que a relação do Brasil com a China se resume a exportar produtos de baixo valor e comprar produtos industrializados da China, Chan, de Hong Kong, defende que as companhias chinesas já estão produzindo no Brasil computadores, televisões e maquinário, como um novo desdobrando da cooperação sino-brasileira.

"Elas estão se beneficiando da Zona Franca de Manaus para produzir e vender não só ao mercado brasileiro, mas à América do Sul", explica.

Segundo Vieira, que além de pesquisador é vice-diretor da Sociedade de Economias Emergentes de Cantão, China, é preciso pensar em uma relação comercial de mais qualidade.

"É imprescindível que o Brasil aproveite o momento deste conflito que define a nova hegemonia global para atrair mais tecnologia da China, especialmente as soluções financeiras (fintech). Como as práticas chinesas, hoje, estão anos-luz à frente de qualquer outro país em termos de pagamentos digitais, uso de blockchain e até de criptomoedas, seria muito saudável o Brasil absorver mais rapidamente tais avanços."