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'Vai se isolar': as diaristas dispensadas sem pagamento em meio à crise do coronavírus

Produtos de limpeza - Getty Images
Produtos de limpeza Imagem: Getty Images

Ligia Guimarães & Juliana Gragnani

Da BBC News Brasil em São Paulo e Londres

18/03/2020 16h05

Faz cinco anos que Carolina* trabalha limpando a casa de uma família em São Paulo, mas nesta terça-feira (16/03), foi dispensada por tempo indeterminado.

"Ela me falou que vai ficar em casa e não quer ficar em contato comigo." "Vai se isolar", disse a empregadora. Ela não falou em dinheiro, e Carolina, 31, não sentiu abertura para tocar no assunto.

A diarista mora na zona norte de São Paulo e limpa esta casa na zona oeste, e outras seis por semana, de segunda a sábado.

Outro empregador seu, professor que dá aulas em casa, também dispensou a diarista, avisando que, daqui em diante, não irá mais precisar dos serviços dela e não pagará pelos dias parados.

"Não tem muito o que ser feito. Eu sou diarista, não tem como cobrar alguma coisa."

Diante da chegada do coronavírus ao Brasil, muitas faxineiras receberam esta semana a notícia de que não terão mais trabalho até que o medo e os riscos do novo vírus diminuam.

Diaristas são trabalhadores autônomos, sem compromisso, portanto não é ilegal demiti-los sem compensação. Já no sistema de mensalista, quem é demitido tem direito a verbas indenizatórias.

A BBC News Brasil ouviu relatos de diversas trabalhadoras, principalmente da capital paulista, de que poucos foram os patrões que se dispuseram a continuar pagando as faxineiras durante o período de distanciamento social.

Os nomes nesta reportagem são fictícios — as trabalhadoras não quiseram se identificar com medo de represálias ou porque, diante de qualquer queixa pública, as contratações futuras possam se tornar ainda mais incertas.

Para a grande maioria, isso significa de uma hora para outra não ter renda para o básico, como aluguel e comida. "Vivíamos bem, porque diarista não ganha tão mal. Agora, vai apertar, não sei como vai ser", diz Carolina, que mora com o marido, jardineiro desempregado há um ano, e a filha de seis anos.

Sua renda mensal era de R$ 4 mil. "A preocupação maior agora é aluguel, água, luz. Pago R$ 850 de aluguel. Acabei de comprar um carro, estou pagando a prestação, R$ 700."

Carteira assinada

A súbita falta de renda diante da pandemia é um trágico desfecho para muitas trabalhadoras (as mulheres são maioria absoluta entre os trabalhadores domésticos) que já amargaram perda de direitos nos últimos anos.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, 6,24 milhões de pessoas trabalhavam como domésticas, maior número desde 2012.

Desde 2016, o total de domésticos com carteira caiu 11,2% e, sem carteira, subiu 7,3%. Desse total de 6,24 milhões de trabalhadores domésticos, 4,42 milhões não têm carteira assinada como é o caso de Carolina.

A renda desses trabalhadores também vinha caindo: era de R$ 879 no último trimestre de 2018, 0,9% menos em relação a um ano antes.

Teresa*, 38 anos, por exemplo, trabalhava há dois meses como mensalista em São Paulo e ia ser registrada com carteira assinada a partir do mês que vem, mas tudo mudou com a chegada do coronavírus.

Ela tinha trocado a vida de diarista por mensalista justamente para ter mais segurança na relação trabalhista.

"Trabalho em casa de família. Me disseram que esse mês eles vão me pagar, mas no mês que vem já não mais. Vou ficar desempregada. Acho que a nossa área vai ser afetada demais. Muitos vamos ficar desempregados."

Ela mora sozinha com a filha de seis anos na zona sul de São Paulo, e diz que, agora, vai depender de conseguir bicos para conseguir sustentar as duas. "Me preocupa tudo: contas de água, luz, internet, filha para criar, aluguel, tudo sozinha."

A filha de teve as aulas suspensas por tempo indeterminado e está em casa. Mesmo assim, a faxineira diz que pretende continuar a pagar os R$ 100 mensais do transporte escolar da menina. "Temos que pagar, é um transporte pequeno. É igual quando tem férias na escola e você continua pagando."

Teresa diz que ouviu de colegas que também estão em isolamento, mas continuaram a receber as diárias dos contratantes. "Tinham que fazer isso pra todas. Porque a gente não tem culpa. Com o mundo parado, não arrumamos nada."

Maria*, de 46 anos, também não é registrada. Ela trabalha em cinco casas — pega ônibus e metrô todos os dias do Ipiranga para Moema, na zona sul, e ganha um total de R$ 2.800 por mês.

Na segunda-feira, ansiosa com a incerteza causada pela pandemia do novo coronavírus, ligou do trabalho para o filho de 22 anos chorando.

"Falei: 'a mãe está preocupada pelo fato de tudo isso estar acontecendo e o que pode acontecer se eu precisar ficar em casa'. Entrei em pânico", conta ela, que teve tuberculose pleural no começo do ano.

Maria diz que comentou com um dos seus empregadores sobre o vírus e ele deu risada de sua preocupação. "Ele me disse: 'Não é para ficar preocupada, você não está limpando a casa de pessoas que viajaram'", relata. "Mas eu sei que não é assim. O vírus espalha. Estão falando para ficarmos isolados."

"No meu caso, eu não posso, porque se eu não for trabalhar, não ganho. Não vou ter como pagar minhas contas. Sou mãe solteira, meu filho tem 22 anos e está sem trabalhar. Vai quebrar minhas pernas."

Só uma de suas empregadoras a dispensou dizendo que pagaria a diária. Já outra mandou mensagem perguntando se Maria viria no dia seguinte. "Eu queria ouvir: 'Não venha, não, fique em casa que eu te pago. Esperei isso, mas não foi o que eu ouvi'."

'Não vou e não pagam'

Nair*, 30 anos, mora em Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo, mas limpa casas na zona oeste da capital quatro vezes por semana. Até quinta-feira, ela ainda não havia limpado nenhuma, nem recebido nada.

"Essa semana mesmo eu não fui nenhum dia. Elas falaram para eu não ir por causa do negócio do coronavírus. Por enquanto não fui em duas. Não sei se a de amanhã vai dispensar ainda. Não vou e não pagam, não. Essa semana, provavelmente, é isso aí", conta, desanimada. Ela veio da Bahia para São Paulo há 14 anos para trabalhar, estudou até a sétima série e criou até agora a filha de 6 anos com o dinheiro das faxinas.

A diária varia entre R$ 165 e R$ 170, e é única renda da família de Nair, que mora com o filho e o marido, pedreiro, que também recebe por dia e está em casa há uma semana, com os serviços parados.

"Estou esperando para ver o que vai acontecer, para ver se eles me chamam", diz ela à BBC News Brasil, por telefone. "Estava esperando que essa semana eu ia fazer mercado, ia fazer açougue. Mas se não entra (dinheiro), fica difícil."

Não é que a vida fosse fácil antes do novo vírus, a começar pelas longas viagens para o trabalho. "Eu pego ônibus, depois pego trem, pego metrô e às vezes tenho que pegar mais um ônibus. São mais de duas horas para ir, e duas horas para voltar. Se tiver qualquer coisa que atrapalhe leva três horas, porque o ônibus é muito ruim."

"Estou esperando para ver o que vai acontecer, para ver se eles me chamam."

O medo do vírus está mais próximo de uma das entrevistadas pela BBC News Brasil. Jaqueline, 51, chegou ao trabalho em São Caetano, na Grande São Paulo, às 8h desta segunda.

Às 9h, sua empregadora lhe dispensou, dizendo que o marido havia tido febre durante a madrugada. No dia anterior, Jaqueline tinha trabalhado na casa. Ela conta que entra em contato, sem proteção alguma, com superfícies que poderiam estar contaminadas.

"Limpo o banheiro, a maçaneta do banheiro, arrumo a cama deles... Até a escova de dente que ele deixa de lado eu pego e guardo".

"Na volta, entrei em desespero, comecei a chorar. Tenho uma filha com diabetes e meu marido tem 62 anos. E se eu transmiti para eles, o que vai ser?"

Além disso, se tiver que ficar em casa porque o empregador foi contaminado, ainda não sabe se vai receber por isso.

"Se ele não estiver com o vírus, vou voltar a trabalhar. Mas se ele estiver com o vírus, não sei o que vai acontecer. Trabalho só na casa deles."

Seu marido, diz ela, trabalha consertando aquecedores e já está ficando bastante em casa. "Uma hora o serviço vai acabar."

"Eu fico preocupada com a doença e com a situação que vai vir depois. Do trabalho, da gente não ter nada, dinheiro para comprar nada. A gente nunca passou por uma situação dessa. Vai ser muito difícil."

'Continue pagando'

Nas redes sociais, em posts no Twitter e no Instagram, usuários têm compartilhado o pedido contrário: dispense sua faxineira ou empregada doméstica, mas continue pagando.

O presidente ONG Instituto Doméstica Legal, Mario Avelino, diz que os empregadores não são obrigados a fazê-lo, mas podem ter "bom senso".

No caso das mensalistas, sejam registradas ou não, o empregador pode tomar diferentes decisões que não prejudiquem o salário das empregadas ou que minimize sua exposição: licença remunerada, antecipação de férias, afastamento com compensação posterior, redução de horário de trabalho ou pagamento de transporte particular, por exemplo.

"O empregador está com a faca e o queijo na mão e tem várias alternativas, só não pode deixar o trabalhador desamparado sem remuneração."

O caso das diaristas é diferente porque são trabalhadoras autônomas. "Você não pode obrigar o contratante legalmente, porque é uma profissional sem vínculo. Mas nada impede que haja uma conversa entre as partes, é uma relação de um para um", diz ele, que também defende que os empregadores dispensem e paguem as diaristas.

"A maioria tem uma ou duas diárias por semana e olhe lá. Vão sobreviver de que forma?"

Esses trabalhadores não estão protegidos pelo governo, diz ele. O pacote emergencial de R$ 147 milhões por conta do novo coronavírus anunciado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, "protege quem já está protegido, quem já está na formalidade", excluindo os cerca de 40 milhões de trabalhadores na informalidade, como as 2,5 milhões de diaristas brasileiras.

O pacote será uma injeção de recursos principalmente por meio da redução temporária ou adiamento de impostos e da antecipação de pagamentos que seriam feitos ao longo do ano a idosos e trabalhadores de menor renda.

Para Avelino, uma solução possível seria que essas diaristas se cadastrassem como MEIs (microempreendedoras individuais), contribuindo para o INSS e garantindo proteção da Previdência Social e em casos de doença.

Há carência de no mínimo 12 meses de contribuição para ter auxílio-doença. Avelino defende que o governo derrube a carência caso o contribuinte seja infectado com coronavírus.

No entanto, com a pandemia e a paralisação de diversos serviços, não é garantido que esses pedidos e cadastros sejam processados com a velocidade necessária para essas pessoas.

O mesmo vale para o Bolsa Família, que deve ser reforçado pelo pacote do governo federal.