Em meio a pandemia e desemprego, milhões de americanos dependem de doações para poder comer
Nos últimos dias, imagens de longas filas de carros, avançando por quilômetros em estradas em diferentes pontos do país, foram recebidas com comoção nos Estados Unidos. Dentro dos veículos, em uma espera que pode levar várias horas, estão milhares de americanos em busca de doações de comida.
Segundo organizações responsáveis pela distribuição gratuita de alimentos a pessoas necessitadas, a crise provocada pelo novo coronavírus tem gerado uma demanda sem precedentes nos Estados Unidos. A Feeding America, maior organização de caridade de combate à fome no país, estima que pelo menos 17,1 milhões de pessoas passarão a enfrentar insegurança alimentar nos próximos meses, um aumento de 46%.
Somente nas últimas quatro semanas, 22 milhões de americanos entraram com pedido de seguro desemprego, segundo dados divulgados nesta quinta-feira (16) pelo Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, um volume não visto desde a Grande Depressão dos anos 1930.
A Feeding America diz que 98% dos 200 bancos de alimentos em sua rede registraram aumento na demanda desde março. Esses bancos de alimentos são organizações sem fins lucrativos que recebem doações de comida e atuam como depósitos e grandes centros de distribuição. Cada um deles trabalha com uma rede de entidades de caridade menores, responsáveis por repassar os donativos à população necessitada.
"Nunca vi um aumento tão dramático na necessidade (de comida), e estou nesse setor há quase 25 anos", diz à BBC News Brasil a presidente e CEO do Greater Pittsburgh Community Food Bank, banco de alimentos no Estado da Pensilvânia, Lisa Scales.
"Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, eu estava em Nova York. Depois do furacão Katrina, eu estava na Louisiana", relata Scales. "(O momento atual) realmente não tem precedentes. A necessidade é tremenda."
Segundo Scales, muitas dessas pessoas estão buscando auxílio pela primeira vez na vida. "Nunca imaginaram que um dia estariam em uma fila para assistência alimentar."
Contraste com ruas vazias
As cenas de enormes filas de carros à espera de comida se repetem pelo país e contrastam com as imagens de ruas vazias em grande parte das cidades americanas, onde mais de 300 milhões de pessoas em 42 Estados estão sob recomendação de ficar em casa para reduzir o risco de contágio pelo novo coronavírus.
Até esta sexta-feira (17), os Estados Unidos já registravam mais de 690 mil casos de covid-19, a doença causada pelo patógeno, com mais de 35 mil mortes.
Para tentar manter as regras de distanciamento social e reduzir o risco de contágio, muitos bancos de alimentos estão realizando eventos especiais de doação de comida em sistema de "drive-thru", nos quais a pessoa vai de carro até o ponto de distribuição, um voluntário coloca uma caixa com mantimentos no porta-malas, e o motorista vai embora, sem necessidade de contato.
Em um desses eventos, organizado pelo Greater Pittsburgh Community Food Bank na semana passada, a fila dupla de veículos se estendia por mais de 3 quilômetros, e a polícia teve de ajudar a orientar o tráfego. Segundo Scales, desde o início da crise, sua organização já realizou sete distribuições de comida do tipo, onde foram atendidos mais de 8 mil carros e doados mais de 180 quilos de alimentos.
"Na sexta-feira passada, em Pittsburgh, servimos mais de 1,3 mil carros, mas ainda assim tivemos de recusar centenas de pessoas (porque não havia mais comida). O que é extremamente doloroso", lamenta.
Em San Antonio, no Texas, a imprensa mostrou imagens de um evento do tipo em que mais de 10 mil famílias começaram a formar fila, em seus carros, antes do amanhecer. Outros chegaram de ônibus. Só havia comida para 6 mil famílias, e muitos tiveram de ir embora sem nada.
Organizações em todo o país relatam aumento na demanda. Um levantamento realizado pela Universidade Washington, em St. Louis, analisou pedidos de informações sobre entidades que fazem doação de comida feitos entre 12 e 25 de março em 23 Estados. O número de pedidos foi de pelo menos o dobro do registrado no mesmo período do ano passado. Em alguns dos Estados, o volume chegou a ser cinco vezes maior.
Insegurança alimentar
Segundo Brian Barks, presidente e CEO do Food Bank for the Heartland, banco de alimentos que atende os Estados de Nebraska e Iowa, no meio-oeste americano, muitas das pessoas que estão necessitando pela primeira vez de doações para comer perderam o emprego recentemente.
"Há também famílias que já têm o orçamento apertado e que, com as crianças em casa por causa do fechamento das escolas, não têm condições de arcar com as refeições extras, já que os filhos costumavam receber café da manhã e almoço gratuitamente na escola", diz Barks à BBC News Brasil.
Mesmo antes da pandemia, cerca de 37 milhões de americanos já enfrentavam insegurança alimentar, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Em levantamento divulgado neste mês pelo instituto de pesquisas do Siena College, 77% das pessoas consultadas na cidade Nova York, principal epicentro da covid-19, disseram estar preocupadas com a possibilidade de enfrentar problemas financeiros graves por causa da crise, e 41% revelaram temor de não poder arcar com custos de alimentação.
Muitos americanos não têm dinheiro poupado. Segundo estudo do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) divulgado no ano passado, caso tivessem uma despesa inesperada de 400 dólares (cerca de R$ 2,1 mil), 27% dos adultos no país precisariam pedir dinheiro emprestado ou vender algo, e 12% não teriam nenhuma maneira de desembolsar o valor.
Queda no volume de doações
Ao mesmo tempo em que o número de pessoas que dependem de doações para comer vem crescendo, há queda no volume de comida doada pela indústria. Com muitos americanos estocando grandes quantidades de alimentos, com medo de possível escassez, supermercados enfrentem falta de alguns produtos, reduzindo as doações. Restaurantes e hotéis, que também costumam ser importante fonte de doações, foram obrigados a fechar as portas por causa do coronavírus.
Com menos doações do que em períodos normais, os bancos de alimentos são obrigados a comprar mais produtos - pelos quais têm de competir com os supermercados. A grande procura também leva a maior demora na entrega.
"Em março, gastamos 675 mil dólares (cerca de R$ 3,5 milhões) na compra de comida. O orçamento normal para o mês seria de 73 mil dólares (cerca de R$ 383 mil)", explica Barks.
Scales diz que, entre março e abril, o Greater Pittsburgh Community Food Bank gastou 1,7 milhão de dólares (cerca de R$ 8,9 milhões) na compra de alimentos. Em épocas normais, seriam gastos em torno de 600 dólares (R$ 3,1 milhões) em dois meses.
De acordo com a Feeding America, 60% dos bancos de alimentos no país estão enfrentando redução nos estoques e 95% registram custos operacionais mais altos. A organização estima que, nos próximos seis meses, serão necessários 1,4 bilhão de dólares a mais (cerca de R$ 7,3 bilhões) para manter as operações.
Problemas de logística também têm dificultado o recebimento de doações de fazendas, apesar de estas estarem enfrentando o cancelamento de compras de grandes volumes por clientes comerciais. Muitos agricultores foram obrigados a destruir o excesso de produção, e afirmam que não há como redirecionar produtos perecíveis aos bancos de alimentos em tempo hábil para consumo.
A Feeding America e a American Farm Bureau Federation, grupo que representa grandes empresas agrícolas, estão pedindo ao governo americano que ajude a facilitar a transferência do excedente das fazendas para os bancos de alimentos.
Voluntários idosos
Há ainda o desafio extra de distribuir os alimentos com segurança em meio à pandemia de um vírus altamente contagioso. Grande parte da força de trabalho dos bancos de alimentos é composta por voluntários idosos, que são considerados grupo de risco.
Com isso, muitos bancos de alimentos decidiram suspender temporariamente a atuação de voluntários. A Feeding America registra queda de 60% no número de voluntários, que costumam ajudar no empacotamento — organizando os produtos para cada família em caixas ou sacolas ? e na distribuição de comida.
Segundo Larry Scott, diretor de operações do banco de alimentos Three Square, em Las Vegas, a crise provocou uma mudança completa no modelo de distribuição da organização.
Os cerca de 200 voluntários por dia que ajudavam no centro de distribuição principal foram orientados a ficar em casa. Além disso, muitas das entidades de caridade parceiras também são gerenciadas por voluntários idosos e decidiram fechar temporariamente.
"Suspendemos a distribuição de comida em 170 das 180 entidades parceiras. Mantivemos apenas as dez maiores e mais geograficamente diversas. E também passamos a operar 21 locais de distribuição em sistema de 'drive-thru'", diz Scott à BBC News Brasil.
Scales diz que o Greater Pittsburgh Community Food Bank também suspendeu o trabalho dos cerca de 300 voluntários e funcionários que atuavam no depósito principal da entidade. Há duas semanas, contam com apoio da Guarda Nacional, que está substituindo os voluntários e também ajudando a coordenar a distribuição.
Segundo Barks, o Food Bank for the Heartland reduziu o número de voluntários que atuam diariamente no depósito de 60 para 30, para facilitar o distanciamento social. Ele ressalta que, antes da covid-19, o banco de alimentos preferia que a própria pessoa beneficiada escolhesse os itens desejados, reduzindo assim o risco de desperdício.
"Agora, para reduzir o contato, estamos organizando essas caixas, que incluem cerca de 15 produtos diferentes, como alimentos enlatados, massa, molho de tomate, etc", observa. "Também suplementamos (as caixas de alimentos não perecíveis) com frutas e verduras, leite e pão."
Barks prevê que os bancos de alimentos irão enfrentar uma enorme demanda por um longo período. "O vírus vai passar. Mas as consequências econômicas vão permanecer por meses e meses."
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