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Por que ataques de Bolsonaro à China não prejudicaram comércio com o Brasil

China é principal parceira comercial do Brasil desde 2009 - Getty Images
China é principal parceira comercial do Brasil desde 2009 Imagem: Getty Images

Luis Barrucho

Da BBC News Brasil em Londres

05/08/2021 08h33Atualizada em 05/08/2021 19h34

As tensões políticas entre Brasil e China, com declarações repetidas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pessoas do seu entorno contra o gigante asiático, não afetaram as relações econômicas entre os dois países no ano passado —os investimentos chineses devem continuar e miram um "horizonte de longo prazo", diz um novo relatório do CEBC (Conselho Empresarial Brasil-China).

E mais: apesar das críticas à China, as ações concretas do governo brasileiro indicaram "mais continuidade do que ruptura na relação bilateral", acrescenta o documento intitulado "Investimentos chineses no Brasil: histórico, tendências e desafios globais (2007-2020)", o mais abrangente já realizado sobre o tema.

"Os investimentos chineses no Brasil são de longo prazo e isso é o que orienta a estratégia da China. Governos começam e acabam, o que importa é a relação harmoniosa entre os dois países, que já vem de muito tempo e historicamente sem atritos", explica Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC e autor do relatório.

Em 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, superando os Estados Unidos.

"Existe, portanto, um certo limite que a China aceita em relação às críticas que recebe. Veja o caso da Austrália", assinala Cariello.

A China é o maior parceiro comercial da Austrália, enquanto a Austrália é uma das principais fontes de recursos para a China.

Mas as relações entre os dois países vêm se deteriorando desde 2018. Recentemente, chegaram a novo ponto baixo, com o apelo do governo australiano por uma investigação independente sobre a origem do coronavírus.

As tensões foram a principal causa da disparada no preço do minério de ferro em maio —a Austrália é o maior produtor mundial da matéria-prima, enquanto a China, o maior consumidor.

Nos últimos meses, a China suspendeu um acordo econômico com a Austrália e denunciou o país à OMC (Organização Mundial do Comércio) por concorrência desleal. Já militares australianos insinuaram guerra com a China.

Diferença entre discurso e prática

Mas, no caso específico do Brasil, diferentemente da Austrália, há uma dissonância entre a retórica de Bolsonaro e de seus aliados mais próximos, inclusive seus filhos, contra a China, e as ações de sua gestão, ressalva Cariello.

Ele cita como exemplo a viagem do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) a Pequim, para participar da reunião da Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação), o principal mecanismo de diálogo bilateral entre Brasil e China, cinco meses após a posse.

"O gesto significou a reativação das atividades da Cosban, que deveria ter encontros a cada dois anos, mas não se reunia desde 2015. A questão dos investimentos foi um dos pontos da agenda, com indicações de que o governo brasileiro apoiava a entrada de novos aportes chineses no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos", diz o relatório.

Além disso, no ano passado, lembra Cariello, o Ministério da Agricultura criou um "Núcleo China", uma unidade especial que cuida das relações com o gigante asiático, principal destino das exportações brasileiras do agronegócio.

Segundo o jornal "Valor Econômico" noticiou na época, a criação do departamento estratégico foi ideia da ministra Tereza Cristina e "uma surpresa até para quem trabalha na área internacional do ministério".

Cristina buscou na iniciativa privada um nome para chefiar a unidade: Larissa Wachholz, ex-diretora da consultoria de investimentos Vallya e com mestrado em Estudos Contemporâneos da China pela Universidade de Renmin, morou em Pequim por cinco anos e fala mandarim.

De fato, os investimentos chineses confirmados no Brasil caíram drasticamente no ano passado (74%) atingindo US$ 1,9 bilhão, o menor valor registrado desde 2014.

O número de projetos caiu para oito, 68% a menos do que em 2019, "ainda que a soma de aportes totais, incluindo anunciados e confirmados, tenha chegado a 15, ficando na média dos projetos entre 2011 e 2016", assinala o relatório.

Apesar disso, ressalva o documento, "esse tombo pode ser interpretado mais como um esfriamento dos fluxos de investimentos globais no exterior, que caíram 35% em 2020, do que por atritos políticos bilaterais. No Brasil, o cenário não foi diferente, com queda de 61,5% dos aportes estrangeiros de forma geral, tendência similar ao declive de 50% apontado pelo Banco Central".

O relatório destaca que outros importantes receptores de aportes chineses no exterior passaram por situações semelhantes.

Em 2020, houve redução dos investimentos na União Europeia e Reino Unido (-43%) e Austrália (-39%), "regiões onde há quedas contínuas desde 2017".

Raio-x dos investimentos

O documento faz um raio-x dos investimentos chineses no Brasil. Estes são os pontos principais:

  • Entre 2007 e 2020, empresas chinesas efetivaram 176 empreendimentos no Brasil, com aportes que somam US$ 66,1 bilhões. Houve ainda 64 projetos não concretizados, com valor estimado em US$ 44,5 bilhões.
  • Até 2020, o Brasil recebeu 47% dos investimentos chineses na América do Sul.
  • 48% do valor do estoque dos investimentos confirmados entre 2007 e 2020 foram direcionados ao setor de energia elétrica --no qual há presença marcante de gigantes estatais como State Grid e China Three Gorges--, seguido por extração de petróleo e gás (28%), extração de minerais metálicos (7%), indústria manufatureira (6%), obras de infraestrutura (5%), agricultura, pecuária e serviços relacionados (3%) e atividades de serviços financeiros (2%).
  • State Grid e China Three Gorges têm a maioria de seus ativos no exterior localizados no Brasil, com fatias de 48% e 60%, respectivamente.
  • Em número de projetos confirmados entre 2007 e 2020, o setor de eletricidade segue na liderança, com 31% do total, mas há um aumento considerável da participação da indústria manufatureira, que fica em segundo lugar, com 28%. Sob essa ótica, aumentam também as participações de projetos em tecnologia da informação (7%), agricultura (7%) e serviços financeiros (6%).
  • Em pouco mais de dez anos, empresas chinesas investiram em todas as regiões do Brasil. Há projetos chineses confirmados em 23 das 27 unidades federativas do país. O Estado de São Paulo lidera com 31% do número de projetos confirmados entre 2007 e 2020, seguido por Minas Gerais (8%), Bahia (7,1%), Rio de Janeiro (6,7%), Goiás (5,4%) e Pará (4,6%).
  • Estima-se que 34,5 mil empregos foram criados no Brasil entre 2003 e 2020 por conta da entrada de novos projetos chineses (greenfield), ao mesmo tempo que as aquisições de ativos já existentes mantiveram 140,4 mil postos de trabalho no país.
  • Em 2019, pela primeira vez o Nordeste atraiu a maioria do número de projetos chineses no Brasil, com participação de 34%, seguido por Sudeste (27%), Sul (15%), Norte (12%) e Centro-Oeste (12%). O Nordeste também liderou a atração de aportes em termos de valor, com mais da metade do capital investido naquele ano.

O que será do futuro entre os dois países?

Segundo o relatório, "apesar de eventuais altos e baixos em termos numéricos, os investimentos chineses no Brasil têm muito a oferecer a qualquer projeto de desenvolvimento nacional".

"A China dispõe de incontestável experiência em projetos de construção civil e indústria, que por décadas estiveram entre os principais motores de sua economia. Parcerias nessas áreas poderiam contribuir para a diminuição dos gargalos de infraestrutura que emperram o crescimento brasileiro", diz o documento.

"O setor de eletricidade, no qual as empresas chinesas já estão bem estabelecidas, continuará a ser um importante eixo de atuação no Brasil. As áreas portuária, de transporte e logística, nas quais há projetos em andamento, poderiam ser mais bem exploradas com a atração de novos investimentos, dado o grande potencial de atuação do lado chinês e a urgência brasileira em implementar projetos nesses setores".

"Existem oportunidades de inovação na agenda bilateral que poderiam se beneficiar do crescente avanço da China nas novas fronteiras da tecnologia da informação. A entrada de investimentos chineses nessa área no Brasil ainda é um fenômeno recente e restrito a um número relativamente baixo de atores, mas oferece um grande potencial para projetos ligados a temas como inteligência artificial, economia digital, internet das coisas, redes 5G, cidades inteligentes, dentre outros".

Atritos

Desde sua campanha presidencial, Bolsonaro vem fazendo críticas à China. Os ataques também vêm de pessoas próximas ao presidente, como seus filhos.

Em fevereiro de 2019, ele visitou Taiwan, irritando os chineses —o país é considerado uma "província rebelde" por Pequim.

Em novembro do ano passado, Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSL-SP) e filho do presidente, publicou (e depois apagou) mensagem dizendo que o governo brasileiro apoiava uma "aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China".

Em comunicado, a embaixada chinesa em Brasília falou sobre o governo brasileiro "arcar com consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil".

Em maio deste ano, Bolsonaro insinuou que a pandemia de coronavírus seria parte de uma "guerra biológica" chinesa e que "os militares sabem disso".

Logo depois, o presidente afirmou que o Brasil é "muito importante" para a China e negou ter citado o país asiático em declaração sobre a origem do novo coronavírus.