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Serviço público, uma cultura de benefícios

Simone Iglesias e Luisa Marini

26/09/2017 10h46

(Bloomberg) -- Fundada há 57 anos sob as bases da concessão de vantagens para atrair mão de obra qualificada do Rio de Janeiro para Brasília, a capital começa a ver desmoronar um sistema que tem como regra o acúmulo de benefícios.

Com o déficit fiscal e o consequente aumento da dívida pública, o governo Michel Temer colocou na pauta temas considerados tabus politicamente: reforma da Previdência, privatizações, e corte de benefícios concedidos ao funcionalismo.

O Executivo anunciou em agosto pacote de privatizações de 57 estatais e bens públicos, como Eletrobras, Casa da Moeda, Lotex, aeroportos, portos e rodovias. As estatais que não entraram no portfólio de vendas devem apertar o cinto para reduzir ao máximo as despesas.

Outras medidas divulgadas pelo governo são as reduções do auxílio-moradia, do salário inicial de todas as carreiras, além do adiamento por um ano de reajustes já aprovados para várias categorias.

Há, ainda, a proposta de reforma da Previdência que prevê a equiparação de regimes de aposentadoria do servidor público ao da iniciativa privada, com um teto bem mais baixo ao que o funcionalismo tem direito hoje.

Cidade dos concursos públicos

A nova realidade está levando pessoas a mudarem seus planos. As oportunidades historicamente oferecidas fizeram a estudante Mayara Destro, 24, a se dedicar aos estudos nos últimos dois anos para conseguir uma vaga no setor público.

"Essa decisão me preocupa. Não vejo que o pacote de privatizações vá beneficiar da forma como estão divulgando. Meu medo é que os direitos fiquem ainda mais limitados. Alguma coisa precisa ser feita, eu entendo, mas o governo está optando pelo caminho mais fácil, e não pelo melhor", avaliou a estudante.

Brasília é o maior reduto nacional de servidores públicos, com 37% da população ativa diretamente empregada na máquina estatal.

Com isso, é uma cidade voltada aos concursos. Mais do que universidades, a capital federal tem centenas de cursos preparatórios para os mais variados tipos de empregos públicos, de auxiliar administrativo a diplomata. Isso porque estes cargos pagam, em média, 59% a mais do que um emprego na iniciativa privada, segundo estudo deste ano publicado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A máquina estatal oferece estabilidade no emprego e benefícios na maioria das vezes superiores aos previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), legislação que rege os empregados da iniciativa privada.

O coordenador da Rede Educacional Alub, Franklin Andrejanini, voltada à preparação para concursos públicos, diz que desde o ano passado há uma queda considerável no número de matrículas.

"Quando Temer entra, instaura de cara um programa de demissões voluntárias em algumas estatais, então, você já começa a ver uma linha de concursos que começa a morrer, como é o caso dos bancos públicos", afirmou Andrejanini.

151 estatais

O Brasil tem 151 estatais que empregam mais de meio milhão de pessoas, segundo a organização Contas Abertas, comandada pelo economista Gil Castelo Branco, um cão de guarda das contas do governo. De acordo com os cálculos da entidade, estas empresas têm orçamento de aproximadamente R$ 1,2 trilhão ao ano.

"Há sentido em ter 151 empresas estatais? Com o Estado grande, elas se tornam um paraíso para os corruptos. A solução para isso, sem dúvida nenhuma, é a privatização. O Estado brasileiro, e não me refiro só às estatais, é corporativo e ineficiente", afirmou Castelo Branco.

Há casos emblemáticos da cultura de benefícios concedidos aos servidores públicos. Na Empresa Brasil de Comunicação, a TV estatal, os funcionários recebem dois bônus extras de R$ 1.000 em julho, apelidado de "vale-canjica, e outro no mesmo valor em dezembro, o ''vale-peru''.

Na Infraero, servidores têm vale-alimentação e vale-refeição inclusive nas férias, dois planos de saúde, além de auxílios-babá e combustível.

A Casa da Moeda emprega dezenas de médicos, dentistas, nutricionistas e massagistas para seus 2.700 funcionários, além do plano de saúde a que os servidores têm direito.

No ano passado, pela primeira vez desde o lançamento do Real em 1994, o Banco Central foi autorizado a importar notas de dinheiro porque as produzidas pela estatal estavam mais caras. A importação resultou em um desconto de quase 20 por cento em relação ao preço que a Casa da Moeda ofereceu, segundo a assessoria de imprensa do BC.

O caso dos Correios

Outra empresa pública cujo corte de vantagens está em andamento é os Correios. Ao longo dos últimos 30 anos, a estatal garantiu a seus funcionários uma gama de benefícios muito além dos previstos na CLT, mas que hoje são responsáveis pelas dívidas da empresa. Dentre eles, estão vale-refeição durante as férias, adicional de 70% do salário neste mesmo período (na iniciativa privada este aporte é de 30%), e vale-cultura de R$ 50.

Os Correios estiveram na mira da gestão Michel Temer para serem privatizados, mas o quadro de pessoal inchado, os sucessivos déficits anuais, a dificuldade de reinventar a tarefa de uma estatal com monopólio de entrega de cartas --um mercado em queda--, e a alta despesa com o plano de saúde bancado pela empresa paralisaram a estratégia.

A redução do benefício aos 141.872 funcionários ativos e aposentados está sendo mediada pelo Tribunal Superior do Trabalho por falta de acordo. O plano é gratuito e estendido aos filhos, cônjuges e pais dos servidores, atingindo um total de 399.924 beneficiários. A conta para a empresa ao ano é de R$ 1,86 bilhão. A direção da estatal propôs a manutenção da gratuidade aos servidores, mas o pagamento de uma taxa para cada dependente.

O sindicato dos funcionários dos Correios reage à tentativa de modificar o plano de saúde. Argumenta que os empregados da empresa têm os salários mais baixos das estatais federais e que nas negociações coletivas de trabalho eles optam pela concessão de benefícios em troca de um reajuste salarial menor.

''Entendemos a importância de se adotar medidas que preservem a sustentabilidade dos Correios, mas não serão aceitas redução de direitos para penalizar os trabalhadores'', sustenta Suzy Cristiny, secretária de imprensa da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares.

O argumento dos salários mais baixos entre as estatais federais não sensibiliza o presidente dos Correios, Guilherme Campos, que assumiu a presidência no ano passado com a missão de acabar com o déficit da empresa.

''Poderíamos simplesmente cortar todos os benefícios, mas não é correto agir desta forma. Estamos negociando, mas se não houver redução do custo da empresa, o futuro dela é fechar as portas'', disse Campos à agência de notícias Bloomberg.

--Com a colaboração de Gabriel Shinohara e Ana Carolina Siedschlag