Dilma fez transferência de renda para ricos, diz economista em livro
Do primeiro mandato do ex-presidente Lula até hoje, a economia brasileira se moveu, mas não saiu do lugar. Algo no meio dessa dança desviou o país do caminho de crescimento consistente do PIB (Produto Interno Bruto), verificado no início dos anos 2000, para um buraco do qual ele ainda não sabe muito bem se já saiu. É o que diz a economista e professora da FEA/USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo) Laura Carvalho em seu recém-lançado livro, “Valsa Brasileira”.
Ela analisa o que levou o país do boom ao caos econômico, criticando a gestão Dilma por uma série de políticas que ela considera responsáveis pela crise, como o corte de investimentos públicos e a adoção de uma agenda de incentivos a empresas. Batizada de “agenda Fiesp”, essas políticas só teriam promovido “transferência de riqueza para rico”. Carvalho defende o papel do Estado como indutor da economia para o país acertar o passo e retomar o crescimento.
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Leia abaixo a entrevista do UOL com a autora, que também é conselheira na elaboração do programa econômico do pré-candidato à Presidência pelo PSOL, Guilherme Boulos.
Você atribui a acerto e sorte o crescimento no governo Lula e a erro e azar a crise no governo Dilma. O que foi sorte e o que foi acerto nos anos Lula?
Foi acertada a compreensão de que o modelo correto de desenvolvimento do Brasil, pela sua natureza de país continental e com grau muito elevado de desigualdade, é aquele que utiliza a superação das carências históricas como motor do crescimento.
A política econômica entendeu que uma dinâmica de redistribuição de renda, com investimentos públicos em infraestrutura física e social, saúde e educação, além de transferência de renda, tinha um potencial enorme de gerar crescimento econômico.
E foi um tipo de crescimento muito melhor que o que tivemos no passado, na ditadura militar, por exemplo, quando houve muito crescimento econômico, mas com concentração da renda. Sorte foi isso só ter sido possível por causa do cenário externo, que favoreceu o controle da dívida pública e da inflação e o equilíbrio das contas externas.
Não houve nenhum erro nesse período?
O erro foi não perceber que essa política só era possível por conta do cenário externo e não realizar uma série de outras transformações que permitiriam que ela tivesse continuidade. O governo não entendeu, por exemplo, que estava gerando inflação de serviços, algo que surge em um processo [de crescimento] como esse, acompanhando o crescimento salarial dos trabalhadores menos escolarizados que foram incorporados ao mercado de trabalho.
É uma coisa boa, claro, mas que foi gerando um processo inflacionário que só não acelerou nesse momento porque se utilizava uma taxa de juros muito elevada para valorizar o real em relação ao dólar e manter os outros preços sob controle.
A ex-presidente Dilma sempre atribuiu à queda das commodities (matérias-primas) um papel determinante para a crise. Foi esse o azar do seu governo?
Foi azar o cenário externo virar e passar a ser desfavorável em 2011, e muito desfavorável a partir de 2014, com queda vertiginosa dos preços dos produtos que o Brasil exporta, como petróleo e minérios. Mas também houve erro de diagnóstico, de não perceber a inflação de serviços que vinha do governo Lula e o desequilíbrio na balança comercial quando as commodities deixaram de estar valorizadas.
Além disso, faltou uma política bem desenhada para o país ter uma estrutura produtiva que incorporasse setores da economia. Mas não os setores da indústria que têm sido foco de políticas de incentivos desde os anos 1970, como a automobilística. Não acho que eles deveriam ter sido o alvo.
Qual deveria ter sido o alvo?
Há uma série de eixos nos quais o governo poderia ter investido, como serviços públicos, saúde, mobilidade urbana e tecnologia. O próprio BNDES poderia ter sido usado para que esse processo se desse junto com uma sofisticação da estrutura produtiva do país e da mão de obra.
Os incentivos acabaram sendo adotados na forma de desonerações (corte de impostos para empresas). O governo, então, errou ao focar em setores tradicionalmente beneficiados por esse tipo de medida?
O problema não são os setores, mas as desonerações como política pública. É uma política conservadora, que não está associada à esquerda em nenhum lugar do mundo. O que eu questiono é esse modelo herdado do desenvolvimentismo dos anos 1970, que não entendeu que esse tipo de instrumento não tem os efeitos prometidos e só promove a transferência de renda para rico.
É a política que você chama de “agenda Fiesp”.
Chamo assim porque a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] fez uma série de propostas, como as desonerações tributárias para grandes empresas, o corte das tarifas de energia elétrica, a redução rápida na taxa de juros e a desvalorização do real. Dilma mudou a política econômica e implementou essas medidas para atender as demandas de um setor industrial que vinha perdendo espaço desde a década de 1990, com a liberalização e a abertura da economia.
Por que as empresas não responderam aos incentivos?
Não adianta achar que o investimento das empresas depende só da margem de lucro e que se você der subsídios elas vão investir, comprar máquinas e equipamentos. Empresas investem quando têm demanda, quando estão vendendo.
O governo ficou insistindo numa série de medidas custosas de incentivo, enquanto todos os componentes do PIB, como consumo das famílias e exportações, desaceleravam.
As empresas não tinham razão para investir, então elas simplesmente não responderam a esses incentivos. Essa política foi ainda mais custosa para o país porque o governo abandonou um pilar de investimentos públicos para focar no pilar voltado para a iniciativa privada e não conseguiu retorno.
O governo devia ter mantido a expansão dos investimentos públicos?
Ninguém parece se lembrar disso, mas Dilma abre seu governo, em 2011, com um corte muito grande nos investimentos públicos. Ela troca aquele modelo de expansão de investimento, distribuição de renda e dinamismo do mercado interno, dos anos Lula, por um modelo que tenta imitar países asiáticos que se desenvolveram baseados na indústria exportadora.
Na prática, trocamos os investimentos públicos por incentivos ao lucro dos empresários e do setor privado, para que esse setor, em tese, exportasse mais, ficasse mais competitivo e elevasse seus investimentos. Essa política fracassa de forma retumbante.
Os financiamentos do BNDES nessa época não entram na conta do investimento público?
Por investimento público, eu quero dizer aquele feito diretamente pelo Estado em áreas prioritárias e serviços públicos, como obras em rodovias, saneamento e transporte urbano. São áreas nas quais temos extrema carência e nas quais o governo precisa investir porque o setor privado não está interessado.
Isso é diferente de usar o BNDES para subsidiar crédito para empresas privadas, que já iam investir de todo jeito. Com Dilma, o governo basicamente deixa de receber imposto para que as empresas privadas façam investimentos sem nenhum tipo de contrapartida.
Por que a aposta no modelo asiático não funcionou aqui?
Esse modelo não funciona aqui porque o Brasil não tem a renda média que os países asiáticos tinham quando fizeram esse processo baseado em exportações. Houve também um erro de se voltar para o comércio mundial em um momento em que ele estava se contraindo.
A competição no mercado de produtos industrializados que o Brasil exporta é muito grande. O país teria que reduzir os salários e desvalorizar muitíssimo o real para conseguir competir lá fora com produtos de asiáticos, como Bangladesh e Vietnã.
E isso não é desejável porque, se você reduzir salário, vai matar o mercado interno, que para nós tem um peso muito maior que as exportações, diferentemente desses países asiáticos.
No livro, o ajuste fiscal promovido no segundo mandato de Dilma representa, na valsa, o passo atrás. Por quê?
Quando Dilma ganha a reeleição por uma vitória muito estreita, ela adota o programa econômico da oposição e realiza, em 2015, um corte brutal de mais de 35% nos investimentos públicos, o que puxa o freio de mão em uma série de setores.
Há também o reajuste rápido das tarifas que ela vinha represando, o que faz com que a inflação acelere muito, impedindo os salários de crescer e destruindo o consumo das famílias. Além disso, o contexto externo se deteriora ainda mais. Tudo isso contribui para que a crise se torne uma das maiores recessões da história.
As contas públicas se deterioraram ao longo do governo Dilma, mas você diz que é mito falar em descontrole. Por quê?
Algumas despesas crescem em todos os períodos, como os benefícios sociais e previdenciários. Mas dizer que houve uma postura fiscal relaxada no governo Dilma não é verdade. Quando você compara historicamente, as despesas no governo Dilma cresceram menos do que nos governos Lula e no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
O que houve nos anos Dilma foi desaceleração da economia e política equivocada de desonerações, o que fez com que as receitas do governo crescessem muito menos do que nos governos anteriores. Isso não é gastança. Culpar os investimentos públicos e os gastos em saúde e educação pela crise não faz o menor sentido.
E dá oportunidade a um discurso equivocado, que diz que qualquer tentativa de realizar um processo de distribuição de renda e melhora dos serviços públicos induzido pelo Estado está condenado ao fracasso porque o Estado não tem dinheiro e é irresponsável.
Tendo em vista que os investimentos públicos sofreram cortes ainda maiores no governo Temer, quais as perspectivas para o país voltar a crescer?
Algumas panaceias são vendidas como soluções para o problema, mas elas esquecem que, para a economia voltar a crescer, é preciso algum tipo de motor. Não adianta confiar numa mística de que os empresários de uma hora para outra vão recompensar o bom comportamento do governo investindo, se eles não têm razão para isso.
Enquanto o desemprego estiver elevado e a desigualdade aumentando, você não tem nenhuma perspectiva de retomada de recuperação, mas sim de estagnação da renda per capita, que é para onde estamos rumando na próxima década.
A PEC do teto dos gastos, aprovada já no governo Temer e que congelou os gastos públicos por 20 anos, é uma dessas panaceias?
Essa é uma política equivocada, que condena os investimentos públicos a desaparecer e que terá que ser revista em breve. Há despesas que vão crescer de todo jeito, mesmo se fizermos uma reforma da Previdência. A população vai envelhecer, e gastos com saúde e educação são obrigatórios. Então, todas as outras despesas vão sendo comprimidas. Mas a verdade é que é uma medida tão pouco realista que ela provavelmente será descumprida e substituída por alguma mais razoável.
Arquiteto da PEC, o ex-ministro da Fazenda e hoje pré-candidato a presidente, Henrique Meirelles, defendia o congelamento de gastos comparando as contas públicas com o orçamento de uma família. Por que você critica essa analogia?
Em uma família, os gastos e os ganhos são coisas separadas. No Orçamento de um Estado, os gastos públicos têm efeito sobre a própria arrecadação. Quando o governo decide gastar mais, dependendo de onde emprega esse gasto, ele cria toda uma dinâmica na economia, com geração de emprego e renda, e aumenta a arrecadação de impostos.
Além disso, o gasto público envolve outras questões, como a taxa de juros. Não adianta só cortar gastos para resolver o problema da dívida pública porque uma parte dela tem a ver com os juros. A prova do fracasso do corte de gastos é que estamos no terceiro ano de implementação dessa política, e a dívida pública continua subindo.
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