É possível manipular inflação? Relembre casos em que índice foi questionado
Resumo da notícia
- Índice oficial atual é considerado confiável por especialistas e não há indícios de manipulação
- Governos já usaram técnicas consideradas questionáveis para reduzir números ruins
- Sensação de alta no bolso do consumidor é maior do que a medida geral
- Isso faz parte de todos os índices no mundo e não indica manipulação
O IBGE divulgou hoje a inflação oficial de 2019, medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo). A alta de preços foi de 4,31% no ano passado, acima da meta do governo, mas dentro da margem de tolerância de 1,5 ponto percentual, ou seja, podendo variar entre 2,75% e 5,75%.
A cada divulgação de inflação, consumidores reclamam que o peso dos preços sentido no bolso é maior do que o medido pelo índice oficial. A queixa ganha força quando a inflação acelera puxada por um produto popular, como aconteceu no final do ano passado com a carne. Mas isso seria um sinal de que há fraude? O governo estaria mascarando o real aumento de preços? Como isso seria possível?
Hoje não há indícios de fraude nos índices oficiais de inflação brasileiros, sendo considerados de confiança por especialistas e pelo mercado. Há explicações técnicas para essa diferença entre o que é sentido pela população e o que é medido pelo IBGE. Isso acontece no mundo todo e faz parte do próprio método de criar um índice. Não é possível que um produto que tenha subido 50%, por exemplo, determine que a inflação de todos os demais produtos seja de 50%. E também não se trata de uma média simples, e sim de uma média ponderada, que leva em conta o peso de cada item no bolso das pessoas.
No passado, porém, intervenções diretas no índice de inflação já aconteceram no Brasil, caracterizando uma manipulação. Relembre alguns casos a seguir.
Mais produto, preço menor
Uma dessas situações foi durante a ditadura militar, no governo do general Emílio Médici, como o economista Salomão Quadros contou em seu livro "Muito Além dos Índices: Crônicas, História e Entrelinhas da Inflação" (FGV).
"No vale-tudo antiinflacionário, o [então] ministro da Fazenda, Delfim Netto, em sua primeira encarnação, apelava para truques como o de abastecer a cidade do Rio de Janeiro, onde eram coletados os preços dos gêneros alimentícios para o cálculo do índice oficial", escreveu.
Por exemplo, se uma seca afetava a produção de tomate, encarecendo o valor, o governo mandaria caminhões do produto para o Rio, aumentando a oferta e diminuindo o preço no local, o que impactaria o índice, que na época era medido pela FGV (Fundação Getulio Vargas).
Em 2014, Delfim Netto afirmou ao jornal "O Globo" que não houve manipulação de preços, mas "controle de oferta", dizendo que foi uma administração legítima.
"Outra cartada do ministro era oferecer crédito em troca de menores reajustes de preços. Em 1973, com tais artifícios, a inflação foi de 13,7%", conta Quadros.
No ano seguinte Mario Henrique Simonsen assumiu a pasta e calculou que o índice seria de 26,6% sem tais recursos, segundo o economista.
Expurgo
Nos anos 1980, outra técnica controversa, que ficou conhecida como "expurgo", foi aplicada sobre os índices de inflação,
Salomão Quadros conta que, em 1983, o Ministério da Fazenda retirou subsídios que barateavam o trigo e derivados de petróleo. Além disso, secas no Sul e enchentes no Nordeste afetaram a safra daquele ano. Isso gerou alta nos preços, e impactaria a inflação, que já estava alta, acima de 100% ao ano.
A FGV, responsável pelo índice oficial de inflação naquela época, calculou o impacto desses efeitos nos preços e, durante três meses, publicou duas versões dos resultados, uma delas chamada de "índices ajustados", basicamente eliminando o trigo do cálculo.
O objetivo com os expurgos, segundo Quadros, era evitar que a inflação aumentasse ainda mais, já que os salários seriam reajustados pelo índice, e essa alta nos rendimentos também levaria a um impacto nos preços no mercado.
Hoje isso seria possível?
Esses dois tipos de intervenção no índice oficial de inflação não são feitos atualmente, afirma Pedro Kislanov, gerente do IPCA no IBGE.
O processo de apuração do índice oficial é muito complexo, segundo ele, envolvendo muitas pessoas e coleta de mais de 500 mil preços em 30 mil locais e 16 estados, seguindo práticas de manuais internacionais, como o do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Por causa dessa descentralização das medições, a intervenção direta no abastecimento de um ponto específico, como aconteceu nos anos 1970, não surtiria efeito, segundo Kislanov.
Também não há possibilidade de que um item seja retirado da cesta de produtos que compõem o índice quando há uma alta pontual.
Índices diferentes geram credibilidade
Uma manipulação direta do governo na inflação hoje em dia também chamaria muita atenção, já que, além do IBGE, outras instituições, inclusive privadas, como a FGV, fazem seus próprios índices e medições.
Há diferenças nos números apurados em cada um, por causa das metodologias aplicadas, mas em geral eles apontam a mesma tendência. Um resultado do IPCA que destoasse muito dos demais chamaria atenção dos especialistas e geraria críticas.
É o que afirma Patrícia Costa, economista e supervisora das pesquisas de preço do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). "Eu acredito que hoje não haja [manipulação] porque os índices são muito próximos", afirma.
Dados na Argentina foram considerados suspeitos
Na Argentina, por exemplo, desde 2007 os dados oficiais foram colocados sob suspeita e setores econômicos começaram a se guiar por consultorias privadas.
Em 2017, o Instituto Nacional de Estatística e Censos do país anunciou um novo índice de preços, de alcance nacional. Até então, o indicador oficial levava em conta apenas preços da região metropolitana da capital Buenos Aires.
Mas por que no meu bolso pesa mais?
Há diversas razões para o consumidor sentir que a alta do preço é maior do que a medida pela inflação.
A primeira delas é que o cálculo da inflação não é uma média simples, em que se somam todos os itens e depois se divide o número pela quantidade de itens. É uma média ponderada, que considera não só as variações dos preços dos produtos, mas também a participação de cada um deles no orçamento médio das famílias brasileiras.
Cada item de consumo tem um peso diferente e, por isso, exerce um impacto distinto sobre o índice de inflação e no bolso dos cidadãos.
Outra questão é que o aperto varia conforme o hábito de consumo de cada pessoa, afirma Patrícia Costa.
Por exemplo, uma pessoa mais velha, em geral, terá mais gastos médicos do que alguém mais novo. Assim, ela vai sentir mais a alta se os remédios encarecerem em um mês.
Há diferenças entre classes sociais, também.
Aumento nos alimentos, como aconteceu com a carne, tendem a pesar mais, proporcionalmente, sobre os mais pobres, já que comida representa uma fatia maior dos gastos totais mensais em comparação com quem tem renda maior.
Veja mais economia de um jeito fácil de entender: @uoleconomia no Instagram.
Ouça os podcasts Mídia e Marketing, sobre propaganda e criação, e UOL Líderes, com CEOs de empresas.
Mais podcasts do UOL no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e outras plataformas
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.