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Suspeita de origem racista faz mercado discutir expressão Black Friday

Comércio do centro de São Paulo (SP) durante a Black Friday de 2019 - Foto: RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Comércio do centro de São Paulo (SP) durante a Black Friday de 2019 Imagem: Foto: RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Felipe de Souza

Colaboração para o UOL, em Campinas (SP)

07/10/2020 04h00

Aguardada por consumidores em todo o país, a Black Friday acontece toda última sexta-feira de novembro. Neste ano, porém, a discussão não é se os preços estarão ou não pela metade do dobro, mas, sim, se o termo que nomeia o feriado promocional é racista.

O assunto ganhou força após O Boticário anunciar que não usará a expressão em 2020. Outras empresas, como a Adidas, começaram a discutir o tema. Não há, porém, consenso se a precaução faz sentido, segundo especialistas consultados pelo UOL.

De onde a Black Friday surgiu?

Apesar de a origem da Black Friday ser desconhecida por não haver registros históricos que confirmem alguma versão, há duas explicações mais difundidas, segundo o professor de sociologia de consumo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), Fabio Mariano Borges.

A primeira remonta à América escravagista do século 18. Vindos da África, negros escravizados eram comprados, agredidos e depois vendidos como mercadoria.

Os poucos que conseguiam sobreviver à rotina de trabalho de até 18 horas diárias sem comida decente eram comercializados a preços abaixo do de compra por estarem doentes ou fracos demais. Era uma forma de os senhores reaverem parte do investimento. Como as vendas aconteciam às sextas-feiras, teria surgido daí o nome.

A outra versão é mais recente. Após o feriado do Dia de Ação de Graças, comerciantes norte-americanos precisavam esvaziar os estoques e se preparar para o Natal. Por isso, promoviam cortes de preços de até 90%.

Intensa, a procura causava problemas de trânsito e furtos, o que fazia policiais trabalharem dobrado. Como a segregação racial norte-americana era escancarada, patrulheiros diziam que "era uma sexta-feira negra", porque associavam a cor da pele de negros à violência.

Black Friday-fabio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Fabio Mariano Borges, professor de sociologia do consumo da ESPM
Imagem: Arquivo Pessoal

Borges, da ESPM, explica que, como a história da época da escravidão não é comprovada, a versão do comércio norte-americano é a mais plausível, apesar de também não haver documentos sobre isso.

Na área financeira, porém, "black" assume outra conotação nos EUA, diz o professor. Por lá, é o equivalente ao "estar no azul" brasileiro. Ou seja, uma loja com as contas 'em preto' está bem financeiramente. Isso pode levar a outra interpretação.

"As vendas no feriado de Ação de Graças lá, na década de 60, não eram positivas. Então, os varejistas vendiam os estoques quase pelo preço de custo não para ter lucro, mas conseguir pagar as contas do mês e o estoque que chegaria para o Natal", declara Borges.

Ele afirma ainda que muitas expressões nos EUA relacionadas a 'black' são positivas. "Aqui [no Brasil] nós temos essa discussão por causa do nosso passado. Não dá para trazer um termo dos EUA, onde há outra interpretação, e dizer que a expressão é racista por vir de lá. Tanto que os movimentos negros locais não se pronunciaram até hoje sobre o nome da Black Friday", diz.

Racismo implícito

A retomada da discussão sobre a origem da Black Friday aconteceu após O Boticário, informar que trocaria o nome do feriado promocional para "Beauty Week", semana em que o catálogo tem descontos de até 70%.

Ao UOL, Artur Grynbaum, CEO do Grupo Boticário, diz que não quer impor nenhuma decisão, mas provocar reflexão sobre o assunto:

O nosso posicionamento reflete o diálogo aberto que mantemos em nosso grupo de afinidade que debate o racismo estrutural, além de elaborar projetos de equidade racial, e conta com a participação de mais de 200 profissionais, incluindo pessoas negras

Black Friday-ian - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Ian Black, da agência de publicidade New Vegas
Imagem: Arquivo Pessoal

Ian Black, da agência New Vegas, concorda com o movimento. Ele lembra que a associação de "preto ser algo ruim" é feita há, pelo menos, 450 anos. "Existe uma luta incessante de vários setores da sociedade, protagonizada por pessoas pretas, que busca uma revisão da nossa linguagem cotidiana para darmos outro significado à existência das vidas negras num contexto positivo e acolhedor, quando a realidade é inversa e perversa", explica.

Apesar de também concordar que a expressão é racista, Ricardo Silvestre, criador da agência Black Influence, que conecta influenciadores e criadores de conteúdos negros, questiona: "por que temos que associar Black Friday a algo ruim?". Ele propõe ver a situação por outro lado:

É um dia em que as pessoas conseguem comprar produtos por um preço mais justo. É muito aguardado, muito esperado. Então, particularmente, associo a Black Friday a algo positivo
Ricardo Silvestre, da agência Black Influence

Amanda Oliveira, analista de pesquisa da Liga Pesquisa, coletivo especializado em levantamento de dados, diz não acreditar que isso resolva a questão. "Temos que mudar essa cultura, definitivamente. A gente precisa acabar com esse racismo implícito", diz.

"Já discutimos sobre a frase 'a coisa tá preta', a palavra 'denegrir'. Então, acredito que essa seja mais uma expressão que tem que cair", completa Luiza Penteado, gerente de projetos da Liga.

E Black Fraude? Pode?

Black Friday-silvestre - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Ricardo Silvestre, criador da agência Black Influence
Imagem: Arquivo Pessoal

Outro ponto levantado pelos especialistas é o termo Black Fraude, apelido nada carinhoso que a data promocional ganhou no Brasil. Para eles, as promoções falsas criadas por alguns varejistas nos primeiros anos mancharam o nome e fizeram o termo pejorativo ganhar um tom ainda mais racista.

"Não adianta lutarmos para mudar um pensamento se o varejo, que deveria fazer as promoções e jogar limpo, não o faz", afirma Ricardo Silvestre. "E essa é uma das coisas que temos que combater: achar que o Brasil é uma terra onde se pode tirar proveito de tudo e sair por cima sempre", afirma Borges.

Empresas promotoras da mudança

Para os especialistas consultados pelo UOL, polêmicas como esta ganharão maior relevância a partir de agora. "A relação de consumo mudou. Hoje, o cliente pede que uma empresa se posicione sobre um assunto, quer que a companhia ajude a formar opinião. Quem vai ao encontro disso consegue alcançar melhores resultados em várias formas", aponta Amanda, da Liga Pesquisa

Para Ian Black, da agência New Vegas, "as marcas no Brasil têm um poder de influenciar profundamente a cultura e conscientizar sobre a urgência da luta antirracista". "Propor uma nova linguagem passa a ser algo não só desejável, mas incontornável", diz.