Deloitte move ação nos EUA para tentar desfazer fusão da JBS com a Bertin

Espelho de uma briga que corre na Justiça brasileira, a Deloitte ingressou com uma ação no Tribunal de Falências do Distrito Sul da Flórida, nos Estados Unidos, para tentar desfazer um dos principais negócios do mercado global de alimentos: a fusão da JBS com a Bertin.

A Deloitte atua no caso como administradora judicial da Tinto Holding, empresa controlada pelos irmãos do fundador da Bertin, Henrique Bertin, morto em 1981 num acidente aéreo.

Em maio, depois de ajuizar a ação na Justiça dos EUA, a Deloitte deixou a administração da falência para se dedicar ao processo, classificado pela auditoria como uma medida de recuperação de ativos.

A Tinto teve a falência decretada pela Justiça de São Paulo em novembro de 2018. A dívida total está hoje em R$ 5,8 bilhões, dos quais R$ 3 bilhões são débitos tributários, segundo documento entregue pela Deloitte ao juiz da falência no início de julho.

O processo da Deloitte foi iniciado em 24 de maio deste ano e corre sob sigilo. O UOL teve acesso à petição inicial. Nela, a auditoria pede a anulação da transferência, para a J&F (holding dos irmãos Batista), das ações da JBS que estavam em poder da Tinto. O negócio foi feito em 2009, como parte da fusão da JBS com a Bertin.

A operação hoje é questionada, sob a suspeita de ter sido uma aquisição da Bertin pela JBS, e não uma fusão, o que tem implicações tributárias.

A Procuradoria da Fazenda Nacional cobra da Tinto Holding R$ 5,2 bilhões referentes ao negócio, sob o argumento de que as empresas esconderam a natureza real do negócio para sonegar impostos. O caso já foi julgado pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e hoje está na Justiça Federal.

No Brasil, o Ministério Público Federal também entrou no caso, para investigar se houve crime de sonegação fiscal e fraude no negócio.

O UOL procurou a J&F, controladora da JBS, e a Tinto Holding para comentar o caso, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

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Bilhões em disputa

No processo nos EUA, a Deloitte contabiliza essa execução fiscal como "danos sofridos pela Tinto" em meio à incorporação da Bertin pela JBS.

Mas o valor total da causa pode ser bem maior. A Bertin estava avaliada em R$ 13 bilhões em 2009, na época da fusão, e as ações da JBS que estavam em poder da Tinto valiam R$ 8,76 bilhões na época.

O tribunal da Flórida poderá decidir o segundo maior conflito empresarial do Brasil, considerando valores brutos - por enquanto, só perde para a disputa envolvendo a venda do controle da Eldorado Brasil Celulose, uma briga entre a J&F, dona da JBS, e os indonésios da Paper Excellence.

No ano passado, os filhos e a viúva de Henrique Bertin foram à Justiça de São Paulo fazer o mesmo pedido, sob a alegação de que os irmãos de Henrique tomaram decisões em benefício próprio e em detrimento dos demais acionistas.

O pedido foi negado em abril deste ano. O juiz Guilherme de Paula Nascente Nunes, da 2ª Vara Empresarial de São Paulo, entendeu que os herdeiros perderam o prazo para questionar o negócio. A operação foi comunicada aos acionistas em 2009 e o Código de Processo Civil prevê o prazo de três anos para situações do tipo.

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O caso agora está em grau de recurso no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Caso os filhos e a viúva de Henrique Bertin saiam vencedores, a Bertin passará a ser dona de 23,5% da JBS.

Como foi a operação

Quando anunciou a intenção de se fundir com a Bertin, a JBS informou que a operação seria feita por meio da criação de uma terceira empresa, a FB Participações. E aí a JBS seria dona de 60% dessa empresa, e a Bertin, de 40%.

A composição da parte da Bertin nessa nova empresa era a seguinte: 73,1% das ações eram de propriedade da Bracol, hoje Tinto Holding (a empresa dos irmãos de Henrique Bertin), e 26,9% das ações eram do BNDESPar, braço do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para investimentos no mercado financeiro.

Esses 73,1% da Bertin é que foram valer 40% da nova empresa, a FB Participações.

Como parte da negociação, a JBS emitiu 929,4 milhões de ações, no valor total de R$ 11,9 bilhões, e as transferiu para os acionistas da Bertin no negócio. E depois disso, essas ações seriam entregues à FB Participações.

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Antes de transferir as ações, os controladores da Tinto criaram outra empresa, um fundo de investimentos chamado Bertin FIP. E esse novo fundo de investimentos foi quem recebeu os 73,1% das ações da Tinto, então Bracol, na Bertin.

No mesmo dia, o Bertin FIP transferiu as ações para a FB Participações.

Paraíso fiscal

Uma das principais alegações da Deloitte no processo é que, em meio ao processo de fusão, Joesley Batista constituiu uma empresa em Delaware, nos Estados Unidos, chamada Blessed Holdings.

O estado norte-americano é considerado um paraíso fiscal e, segundo o site do governo do estado, "mais da metade" das empresas listadas em bolsa nos EUA estão registradas lá.

A constituição da Blessed nunca foi comunicada ao mercado. Para a Deloitte, deveria ter sido. É que a Blessed recebeu, em 24 de dezembro de 2009, dias depois do anúncio da fusão, 65,8% da participação da Tinto na Bertin. Em novembro de 2010, depois de uma reavaliação das dívidas da Bertin, outros 19,5% das ações da Tinto na Bertin foram transferidas para a Blessed.

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A relação de Joesley com a Blessed só veio a público em 2016, quando foram divulgados os depoimentos dele no acordo de leniência assinado entre a J&F e o MPF (Ministério Público Federal).

Nos depoimentos, Joesley contou que comprou a Blessed Holdings e transferiu sua sede para as Ilhas Cayman, outro paraíso fiscal, mudando o nome da empresa para Blessed Cayman.

Em 2017, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) descobriu que ele e o irmão Wesley pagaram US$ 150 milhões cada para comprar a empresa, constituída na verdade pelo banco J.P. Morgan, que negou irregularidades, nos processos em que foi envolvido por causa disso - embora a responsável pelo negócio tenha deixado o banco depois que o caso veio à tona.

"Contrato de gaveta"

De acordo com a Deloitte, a transferência das ações da Tinto para a Blessed, que hoje se chama Colorado, estava prevista em um "contrato de gaveta" assinado entre os irmãos Batista e os irmãos Bertin. Ou seja, um contrato do conhecimento apenas das partes envolvidas e nunca registrado em cartório ou em qualquer meio oficial.

Inicialmente, o contrato previa a transferências da ações dos Bertin para a Blessed por US$ 10 mil. Mas, depois que foi constatado que as dívidas da empresa eram de R$ 5,4 bilhões, e não R$ 4 bilhões, foi feito um aditamento para transferir mais ações por US$ 17 mil.

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Em troca, os irmãos Bertin receberam R$ 750 milhões e mais 10% das ações da JBS, avaliadas na época em R$ 2,5 bilhões.

Os irmãos Bertin foram à Justiça contra esse contrato de gaveta. Na ação, alegaram que suas assinaturas haviam sido falsificadas, mas o processo foi encerrado num acordo mantido até hoje em sigilo.

De todo modo, a Deloitte considera os valores da transação "irrisórios". Se for considerada a avaliação de R$ 12 bilhões da Bertin e que o Bertin FIP recebeu, em 31 de dezembro de 2009, R$ 8,75 bilhões em ações da JBS pela incorporação da Bertin, essa transação deveria ter custado R$ 7,4 bilhões, e não US$ 27 mil.

"Os acordos de transferência entre os Bertin e a Colorado são nulos e sem efeito", afirma a Deloitte. "Esses acordos parecem concretizar uma venda legítima de ativos pela Tinto à Colorado [nome atual da Blessed], e contêm alegações que indicam essa intenção - mas, na verdade, esses acordos resultaram no enriquecimento ilícito da Colorado em detrimento da Tinto e seus credores."

Esqueleto tributário

O negócio entre a JBS e a Bertin também tem sido uma complicação tributária para as empresas. A transação foi selada em 2009. Em 2014, a Receita Federal considerou a criação do Bertin FIP, o fundo de participação dos controladores da Tinto Holding, fraudulenta.

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Segundo a autuação fiscal sobre o caso à qual o UOL teve acesso, o fundo não tem nenhum "propósito negocial". Foi criado apenas para receber as ações da Tinto e registrar o ganho de capital auferido pela empresa em meio à negociação entre a Bertin e a JBS.

Pela legislação tributária brasileira, os ganhos de capital decorrentes da compra de participação societária por fundos de investimento são isentos, conforme explicou o procurador da Fazenda Leonardo Curty, em depoimento à CPI do BNDES na Câmara, em junho de 2019.

Por considerar que a operação foi fraudulenta, a Receita decidiu cobrar o Imposto de Renda decorrente da operação. A autuação foi mantida pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e agora as empresas discutem o caso na Justiça Federal em São Paulo.

Os controladores da Tinto já apresentaram habeas corpus para trancar o caso, alegando que os fatos já eram investigados em outros processos, mas o pedido foi negado e as investigações seguem.

Em abril de 2022, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) também se pronunciou sobre o caso. E decidiu que o Bertin FIP foi constituído para ocultar o verdadeiro patrimônio dos sócios e controladores em detrimento dos acionistas. Para o tribunal, houve "desvio de finalidade" e "confusão patrimonial" na criação do fundo.

Na época do lançamento do imposto na Dívida Ativa, o total devido era de R$ 3,1 bilhões. Hoje, com as correções, multas e juros, está em R$ 5,2 bilhões, conforme as contas da Deloitte.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • A Procuradoria da Fazenda Nacional cobra R$ 5,2 bilhões da Tinto Holding, dos irmãos de Henrique Bertin, e não da J&F, como dizia a reportagem

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