Convênios pagaram R$ 5,5 bi em tratamentos após brigas na Justiça em 2023

Com um diagnóstico de assimetria craniana aos quatro meses, o filho de Mariana* (que preferiu não se identificar) precisava de tratamento o mais rápido possível. A condição rara faz com que o crânio do bebê se desenvolva disforme, podendo causar deformações sérias, alterando a posição dos olhos, boca e nariz.

Mariana, então, correu para o plano de saúde da criança com a prescrição médica para conseguir, pelo convênio, o custeio de uma órtese, também conhecida como "capacetinho", usada no tratamento da condição. O valor chega a R$ 15,9 mil.

Então, uma surpresa para a família: o tratamento não era coberto pelo plano. Mas uma cirurgia reparadora — com custo de mais de R$ 150 mil —, sim.

"O capacetinho é um tratamento muito menos invasivo que uma cirurgia. Isso é muito surreal. Preferiam abrir o crânio do meu filho do que pagar pelo capacete", desabafa a mãe.

Indignada e correndo contra o tempo antes que a condição de seu bebê se agravasse, Mariana pegou um empréstimo e pagou ela mesma pelo tratamento. Agora, luta na Justiça para ser reembolsada pelo convênio. "A gente se endividou para pagar o tratamento dele, mas não tinha como esperar e fazer a cirurgia, que é muito invasiva, era a última opção. Não pudemos contar com o plano de saúde, que já não era barato", desabafa.

"Eles [convênios] querem se sobrepor às ordens médicas para arrastar o processo e não arcarem com os custos", diz o advogado Alfredo Lobo, que defende a família contra o plano de saúde na Justiça. "Eles lidam com o tratamento como se fosse estético, usam essa justificativa para não pagar."

O processo já corre há um ano e meio, ainda sem solução.

Planos de saúde x Justiça

Mariana é uma entre os milhares de brasileiros que brigam na Justiça contra seus convênios médicos. Somente em 2022, dados consolidados mais recentes do painel de Estatísticas do Poder Judiciário, do CNJ, foram 159 mil novos processos contra a Saúde Suplementar, que compreende os convênios privados.

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As operadoras de saúde, por outro lado, reclamam que tiveram gastos na casa dos R$ 5,5 bilhões com procedimentos, tratamentos e medicamentos obtidos por meio de decisões judiciais em 2023. O montante é 36,9% maior do que o registrado no ano anterior, 2022, de R$ 4 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).

É possível conferir o aumento ao longo dos anos:
Ano - Gastos (R$)

  • 2016 - R$ 1,3 bilhão
  • 2017 - R$ 1,8 bilhão
  • 2018 - R$ 2 bilhões
  • 2019 - R$ 2,4 bilhões
  • 2020 - R$ 2,7 bilhões
  • 2021 - R$ 2,5 bilhões
  • 2022 - R$ 4 bilhões
  • 2023 - R$ 5,5 bilhões

O setor reclama da despesa alegando que, entre demandas legítimas, há quem procure a Justiça brasileira para furar períodos de carência e obter autorização para fazer procedimentos estéticos custeados indevidamente, segundo eles, pelo plano de saúde. Essas despesas em geral, também, são uma das causas apontadas para o forte reajuste nos valores dos convênios médicos, que no ano passado chegaram a 25%.

Tudo parte da liminar

Esses processos contra os convênios médicos na Justiça têm como método começar com um pedido de liminar. Ou seja, uma decisão rápida do juiz pela liberação ou não da realização do procedimento, medicamento ou tratamento custeado pelo plano, sob alegação de urgência no caso.

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Conforme o relatório "A Judicialização da Saúde Suplementar", da FGV com financiamento da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), a maioria dos processos que tramitam em primeira instância estão relacionados a negativas de cobertura assistencial por parte dos planos de saúde. Segunda e terceira motivações são, respectivamente, sobre reajuste de mensalidade e manutenção de contratos.

Nos processos em primeira instância contra as operadoras de saúde por cobertura assistencial:
● 79,6% das decisões são favoráveis ao usuário;
● 14% são favoráveis às operadoras de saúde;
● 6,4% são parcialmente favoráveis ao usuário. Nestes casos, é comum que o beneficiário tenha pedido por dois tipos de tratamento e apenas um deles é concedido.

A taxa de sucesso das ações, segundo a análise, varia conforme a doença relatada no processo. "Por exemplo, quando se trata de tumores, quase todas as decisões são favoráveis a usuários, assim como nos casos em que se pede tratamentos para malformações congênitas/deformidades e anomalias cromossômicas, que costumam envolver tratamentos de alto custo para doenças raras que afetam crianças. Por outro lado, para transtornos mentais e comportamentais, a probabilidade de decisão favorável é menor, ainda que alta", diz o estudo.

É aí que entra a principal reclamação da categoria: a de que os juízes não têm competência para decidir, com embasamento técnico, se aquele tratamento é ou não urgente e deve ser realizado o quanto antes.

Médico pode ajudar juiz a decidir

A associação reivindica apoio técnico de médicos ao juiz na hora da primeira decisão, a liminar. Esse corpo técnico, o Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário (NatJus), formado por profissionais da saúde, já existe em alguns tribunais e é, inclusive, recomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas não são todos os fóruns que dispõem.

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"A gente não é contra a busca no Judiciário, isso é um direito do usuário. Na verdade, o problema são os procedimentos que não deveriam ter sido pagos pelo convênio", argumenta Marcos Novais, superintendente-executivo da Abramge.

Como exemplo, Marcos traz casos em que cirurgias bariátricas, em pacientes não obesos e com outras alternativas à disposição, são realizadas e custeadas pelos convênios via liminar. Há outros pedidos mais específicos, como uma solicitação para que o paciente fizesse "reabilitação neuropsicológica duas horas por semana seguindo o programa de reabilitação do método do Luria, onde apenas profissionais com estágios realizados presencialmente nos centros do Luria na Rússia (Moscow Research Center of developmen neuropsycology) possuem a autorização de aplicar esse programa no Brasil". Neste último caso, o pedido foi negado.

O superintendente também aponta a necessidade de haver protocolos e diretrizes que sejam respeitados na Justiça. "Precisamos vencer essa barreira. Se não tem indicação médica, a decisão não vai ser concedida, mas ele vai ser encaminhado para algo que o paciente tenha indicação."

"A gente precisa ter uma análise de técnico médico que ajude a identificar a necessidade ou não. O juiz fica com a parte de interpretação de leis, mas o médico parte com o entendimento de qual é aquele procedimento, em que momento ele é mais indicado e uma análise nessa linha", argumenta.

Paciente pode ter que reembolsar plano

O advogado João Pedro Silvestrini, que atua com casos relacionados ao setor da Saúde, explica que, após a decisão liminar, o processo está apenas começando. Ao longo de toda a disputa judicial, o usuário tem que apresentar laudos, exames e todos os documentos que comprovem sua condição de saúde e a necessidade daquele procedimento ou medicamento. Do outro lado, o convênio argumenta por quais razões negou o acesso àquele tratamento anteriormente e tenta não arcar com os custos.

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"Como esses pedidos são feitos com certa urgência, é preciso que essas questões sejam resolvidas logo para que isso não cause nenhum prejuízo irreparável para a saúde do beneficiário. Ele [juiz] vai tomar essa primeira decisão apenas com o que foi trazido a ele", diz Silvestrini sobre as decisões liminares.

"Depois, tem todo o procedimento legal. O plano de saúde vai apresentar sua defesa, serão apresentados documentos e uma perícia pode ser solicitada. Se ficar comprovado que, por exemplo, o conveniado estava de má-fé, ele será condenado a restituir todos os valores gastos pelo plano", explica.

Da mesma forma, caso o procedimento não seja autorizado já na liminar, o imbróglio segue na Justiça até que a sentença seja publicada. A tramitação de um processo desse tipo leva pelo menos dois anos só na primeira instância, segundo o advogado. Depois disso, caso não estejam satisfeitos, o plano ou o beneficiário ainda pode recorrer.

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