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REPORTAGEM

Guerra: Fabricantes de aviões boicotam Rússia, e segurança fica ameaçada

Avião Airbus A320 da companhia aérea russa Aeroflot: Empresas do país podem ficar sem aviões e peças para reposição - Divulgação/Alan Lebeda
Avião Airbus A320 da companhia aérea russa Aeroflot: Empresas do país podem ficar sem aviões e peças para reposição
Imagem: Divulgação/Alan Lebeda

Alexandre Saconi

Colaboração para o UOL, em São Paulo

13/03/2022 04h00

A guerra na Ucrânia tem imposto diversas sanções econômicas à Rússia por países contrários ao conflito. Nessa mesma linha, várias empresas têm fechado suas operações e anunciado a saída daquele país.

Mais recentemente, as maiores fabricantes de aviões do mundo (Airbus, Boeing e Embraer) anunciaram alguma maneira de interrupção dos serviços para empresas aéreas russas. Os termos do boicote não são muito transparentes, e ainda não fica claro se as empresas conseguirão voar sem o suporte formal dos fabricantes e quais os termos para o fim das sanções.

Em comum, há o encerramento do fornecimento de peças, manutenção e suporte técnico para as empresas aéreas russas, além do fechamento de alguns escritórios naquele país e na Ucrânia.

A Airbus, em nota, informa que as companhias aéreas podem realizar as manutenções desejadas de acordo com os manuais do fabricante que já estão em sua posse, sejam elas próprias ou oficinas terceirizadas que foram homologadas pelas autoridades daquele país. Ainda assim, ainda não é possível definir como as empresas podem fazer isso sem afetar a segurança dos voos.

Importante mercado

Como a Rússia e a região afetada no leste europeu são um mercado importante, com centenas de aeronaves dessas indústrias voando por lá, tanto fabricantes quanto empresas de leasing (espécie de aluguel, também chamado de arrendamento mercantil) estão agindo com cautela.

Atualmente, são cerca de 500 aviões da Boeing e da Airbus voando na região, cujo valor estimado chega a US$ 10,3 bilhões (R$ 52 bilhões), segundo a empresa de consultoria Ishka. Já pela Embraer, são 60 aviões, um pouco menos da metade destes pertencente a operadores privados da aviação executiva e o restante de propriedade de empresas de leasing e que operam em companhias aéreas.

Devido às incertezas da guerra, ainda é cedo para definir se esse discurso do boicote é prático ou apenas político. As empresas precisam pesar como proceder com as sanções, tendo de analisar se vale a pena perder a fatia de mercado na região para manter no restante do mundo ou se terão de levar outros fatores em consideração.

Junto a isso, também é preciso entender como o boicote pode agir em uma cadeia muito interligada. No Brasil, por exemplo, a Embraer depende de produtos à base de titânio vindos da Rússia. Nesse caso, a empresa diz que tem reservas de peças do tipo para em torno de um ano e meio a dois anos.

Já a China, tradicional aliada da Rússia, anunciou recentemente que acolherá o boicote e não fornecerá peças aeronáuticas para o país. Segundo a imprensa russa, com a decisão chinesa, as empresas deverão buscar peças para a manutenção dos seus aviões na Índia e na Turquia.

Segurança pode ser afetada

Para Sillas de Souza Cezar, professor do curso de economia da Faap (Faculdade Armando Álvares Penteado), o boicote pode causar fortes impactos na aviação russa e tornar esse segmento inseguro no país. Segundo ele, "na melhor das hipóteses, na mais otimista, voar fica mais perigoso".

"As empresas aéreas seguem os protocolos dos fabricantes. Quando Airbus, Boeing e Embraer anunciam que vão cortar o serviço de suporte e venda de peças, as companhias aéreas passam a ter de fazer a manutenção dos aviões por conta própria, o que aumenta a insegurança", diz o economista.

Uma alternativa, por um curto espaço de tempo, segundo Cezar, é canibalizar uma aeronave em bom estado, ou seja, fazê-la parar de voar para pegar suas peças para abastecer os outros aviões que continuarão em operação.

Isso, entretanto, aumentará seriamente os custos, diminuindo a receita das empresas. "Quem for voar vai ficar com medo, pois sabe o que está acontecendo. Por isso, esse tipo de sanção afeta, objetivamente, o transporte aéreo", diz o professor.

Cezar ainda destaca que, nesse segmento, o efeito do boicote na aviação será grave, não apenas simbólico. "A saída do McDonald's da Rússia, por exemplo, não gera um impacto muito grande, uma vez que isso é mais simbólico. Em termos práticos, os cidadãos daquele país vão comer outra coisa que não o Big Mac. Falando de aviação, isso muda muito, já que o país depende da aviação para se conectar, além do fato de que os custos da operação aumentam e sair do país se torna algo impensável", diz.

Com o tempo, os passageiros também podem passar a evitar voar nessas empresas, já que há a dúvida se aqueles aviões estarão equipados com peças originais ou do mercado paralelo, ou, ainda que não tenham as mesmas especificações dos fabricantes, afirma Cezar. Com essas dificuldades, o preço da passagem deve aumentar e o valor das ações das companhias despenca.

Imagem e contratos em jogo

Sillas Cezar ainda diz que as fabricantes não estão, necessariamente, se posicionando contra a guerra. Elas estão pensando na imagem institucional ou em uma eventual sanção de outros países, que podem proibir a comercialização de seus jatos.

Isso se deve ao fato de que, se a reputação for manchada e o valor delas cair, será um custo muito maior para se recuperar e refazer suas imagens. Essas empresas ainda podem enfrentar restrições para acessar mercados tradicionais, como a própria Europa, que foi que definiu o pacote de sanções à Rússia.

Há o risco de a aviação russa parar, de fato, com os aviões sendo mantidos no solo. Antes de algum avião cair, as companhias aéreas russas devem parar de voar, até mesmo para evitar problemas com imagem, financeiros ou tenham de pagar alguma indenização que possa quebrar a empresa em caso de acidente
Sillas de Souza Cezar, professor da Faap

O especialista ainda diz que as empresas podem ter de sacrificar uma parcela significativa dos negócios para não ter de sacrificar o todo. "Nenhum dos fabricantes quer guerra, pois ela é ruim para os negócios. As empresas não estão saindo porque a Rússia não é interessante. Eles analisam que é melhor perder uma fração dos negócios do que perder todo ele. Preferem 'perder o anel a perder o dedo'", afirma o economista.

Dificuldade em cumprir as sanções

Os aviões das companhias aéreas, em sua maioria, pertencem a empresas de leasing (também chamado de arrendamento mercantil), que os "alugam" por um valor mensal. Dentro do pacote de sanções impostas pela União Europeia, foi dado um prazo para até o dia 28 de março para que essas aeronaves fossem devolvidas.

Entretanto, essa meta não deve ser cumprida facilmente, deixando dúvidas sobre os efeitos do boicote. De acordo com Ricardo Fenelon, advogado especialista em aviação e ex-diretor da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), as sanções no setor são uma questão complexa e que ainda não estão com os termos muito claros sobre como irão ser efetivadas.

"Será muito difícil colocar em prática o cancelamento desses leasings se eles realmente ocorrerem", diz o especialista, que elenca os seguintes questionamentos para isso:

  • As companhias russas vão cumprir a devolução desses aviões?
  • Como é que vai ser feito o voo para fora da Rússia?
  • Como as tripulações das empresas de leasing conseguirão chegar na Rússia buscar esses aviões?

Fenelon destaca que os maiores problemas não estão ligados a um eventual ataque a essas aeronaves civis, mas a questões técnicas da devolução, tendo em vista que há diversas restrições de voos na região.

Ao mesmo tempo, as empresas russas terão de buscar alternativas para conseguirem voar caso as aeronaves sejam devolvidas.

Isso, com certeza, é ruim para a aviação do país. Em qualquer nação do mundo que tem um transporte aéreo relevante, perder os três principais fabricantes em um mercado onde, praticamente, não há outro do mesmo porte, causará um forte impacto negativo nesse segmento, como é no caso da Rússia
Ricardo Fenelon, advogado especialista em direito aeronáutico

O especialista ainda faz uma comparação da situação daquele país com uma eventual saída da Boeing e da Airbus do Brasil. Embora ainda tenhamos a Embraer como fabricante nacional, ela não daria conta de suprir toda a demanda das empresas aéreas em um curto e médio prazo, diz Fenelon, lembrando que essa é uma situação hipotética.