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Onda de calor recorde: vigilantes sofrem com terno e gravata em São Paulo

Nas últimas semanas, a cidade de São Paulo vem registrando temperaturas recordes em ondas de calor sem precedentes. Mesmo assim, é comum ver vigilantes de empresas privadas de segurança usando terno ou gravata, a céu aberto, nas portas de condomínios residenciais e estabelecimentos comerciais.

Desde então, a coluna tem conversado com alguns desses profissionais e registrado uma série de reclamações. Em geral, as queixas se referem à necessidade de passar longos períodos em pé (os turnos são de 12 horas) e, sobretudo, à obrigação de usar uniformes não apropriados para o calor excessivo, como roupas sociais.

A reportagem ouviu relatos de tonturas, vertigens e suor em abundância, apesar de a convenção coletiva da categoria no município, em seu artigo 34, afirmar que "as empresas de segurança e seus contratantes ficam obrigados a manter condições de higiene e segurança no local de trabalho".

"É um calor insuportável. Tem empresa que não deixa trabalhar só de camisa e tem posto de trabalho que não tem banheiro — é só um guarda-sol para o profissional ficar embaixo", ilustra um profissional ouvido sob a condição de anonimato.

Só na capital paulista, o sindicato de trabalhadores da categoria estima em 40 mil o número de empregados no setor, que também compreende segurança armada e transporte de valores.

"O vigilante trabalha com a atenção. Ele precisa estar com o seu físico preservado, a sua mente sadia. Numa situação dessa em que ele está com terno e gravata embaixo do sol, automaticamente essa condição vai tirar toda a atenção, e ele não vai desempenhar um bom serviço", diz Antônio Pereira de Oliveira, presidente do Sindicato dos Empregados de Vigilância, Segurança e Similares de São Paulo (Seevissp).

Fiscalização da Polícia Federal

A operação das empresas de segurança privada no país é regulada pela Polícia Federal (PF). Uma das exigências é justamente o registro de um memorial descritivo com as especificações das vestimentas usadas pelos vigilantes, de acordo com alguns requisitos estabelecidos por uma portaria da PF.

O regulamento até prevê os chamados "uniformes de verão". Em cidades do litoral, por exemplo, é comum encontrar seguranças com trajes apropriados para altas temperaturas, como bermuda e camiseta. Na capital paulista, entretanto, é praticamente impossível achar vigilantes nas portas de prédios usando outro tipo de roupa que não a social — em geral de cor escura, o que agrava a sensação de calor.

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"Na minha empresa, eu tenho uniforme de verão aprovado pela Polícia Federal", afirma Sidney Tinoco, diretor de marketing do Sesvesp, sindicato patronal que representa 164 companhias de segurança privada do estado de São Paulo. "Mas cada uma tem o seu jeito de trabalhar dentro das normas legais. O Sesvesp não pode interferir", acrescenta.

Segundo Tinoco, as firmas de pequeno porte têm mais dificuldade para lidar com a regulamentação, por falta de recursos humanos especializados. Além disso, quando não têm os uniformes de verão devidamente aprovados, elas temem ser penalizadas pela fiscalização da PF, caso liberem seus empregados a usar vestimentas mais leves.

Outro desafio é controlar as empresas de segurança clandestinas, que passam ao largo da fiscalização da PF. "Está cheio por aí", diz o diretor do Sesvesp.

Procurada, a assessoria de comunicação da PF não retornou até o fechamento deste texto. A matéria será atualizada caso um posicionamentos seja enviado.

'Questão cultural'

Para além das questões de regulamentação, outro desafio enfrentado pelas empresas de segurança — e por seus empregados — é se adequar às exigências feitas pelos contratantes dos serviços.

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É comum que os vigilantes sejam obrigados a usar terno e gravata para manter uma aparência supostamente refinada e agradar moradores de condomínios e clientes de restaurantes, por exemplo.

Na avaliação de Daniel Bitencourt, meteorologista e pesquisador da Fundacentro, órgão do governo federal voltado à promoção da saúde e da segurança no trabalho, é preciso avançar em questões culturais.

"Será que não existiria uma outra vestimenta que também mostrasse seriedade, que transmitisse segurança, mas que fosse de um tecido realmente mais adequado para que essa transferência de calor [do vigilante] com o meio fosse mais eficiente?", questiona. "A mudança climática não é mais algo para o futuro, isso já está em curso. A gente precisa pensar em meios de mitigação, de adaptação desse calor que já é o novo normal", complementa Bitencourt.

A responsável pela Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador do Ministério Público do Trabalho (Codemat/MPT), Cirlene Zimmermann, faz coro à avaliação do pesquisador da Fundacentro.

"Ainda verificamos uma dificuldade de compreensão acerca dos impactos das mudanças climáticas no mundo do trabalho", diz a procuradora. "Mas as diretrizes [da legislação] são claras quanto à necessidade de identificar os perigos externos previsíveis, avaliar os riscos decorrentes e implementar medidas de prevenção e controle. Portanto, não há espaço para a omissão empresarial", completa.

Trabalho insalubre ou não?

Em 2019, a Portaria 1.359 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) deixou de considerar como insalubres as atividades a céu aberto impactadas pelo calor.

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No entanto, um grupo técnico tripartite — formado por representantes do governo federal, de entidades patronais e de sindicatos de trabalhadores — está debatendo a retomada da exposição ao calor como fator de insalubridade, explica Rogério Araújo, um dos coordenadores da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE (SIT/MTE).

"Isso está sendo novamente discutido para determinar quais são os limites e quais as medidas a serem tomadas nesses casos", finaliza Araújo.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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