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Reportagem

Ex-ladrão de livros raros move ação trabalhista contra 'Uber de garçons'

"Eu saí da cadeia decidido a procurar uma alternativa para ganhar dinheiro que não me trouxesse mais dor de cabeça, nem problemas com a Justiça. Mas acabei passando por discriminação por causa da minha vida pregressa."

Condenado à prisão por furto e receptação, Laéssio Rodrigues de Oliveira já foi considerado o maior ladrão de livros raros do país pela Polícia Federal. Dentre os papeis subtraídos de acervos públicos e privados — que lhe renderam fama, dinheiro e anos de cárcere — figuram fotografias originais do funeral de Dom Pedro 2º e pranchas desenhadas pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret, no século 18.

Desde o começo do ano passado, no entanto, Oliveira vinha trabalhando como garçom e auxiliar de serviços gerais em restaurantes da Grande São Paulo por meio da Estaff, uma plataforma de intermediação de mão de obra similar à Uber.

No final de maio, ele ingressou com uma ação trabalhista pedindo reconhecimento de vínculo empregatício com a Estaff, além de duas outras empresas clientes do aplicativo: a Sapore, multinacional de restaurantes corporativos, e a Integral Alimentação, indústria de refeições.

Oliveira pede cerca de R$ 162 mil relativos a direitos trabalhistas não pagos, como férias, 13º salário, adicionais noturno e de insalubridade, além de indenizações por danos morais e materiais. Como justificativa, encaminhou à reportagem prints da tela do app que comprovariam ao menos um mês de trabalho ininterrupto pela plataforma, além de emendas de "jobs" selecionados por ele próprio que totalizavam praticamente 24 horas seguidas em serviço, em duas empresas diferentes.

"A gente participava de eventos e não nos deixavam fazer intervalos para comer e descansar", conta Oliveira. "Às vezes, eu nem voltava para casa. Dormia em praça ou em estação do metrô para cumprir os horários", acrescenta.

Prints envidado por Oliveira mostram trabalho ininterrupto no mês de fevereiro e emendas de turno num total de 23 horas
Prints envidado por Oliveira mostram trabalho ininterrupto no mês de fevereiro e emendas de turno num total de 23 horas Imagem: Reprodução

A ação também anexa imagens de uma queimadura grave que ele relata ter sofrido ao manipular um produto corrosivo para limpar uma panela, sem a devida orientação e os necessários equipamentos de proteção individual, enquanto trabalhava para a Integral Alimentação.

Oliveira afirma ainda ter sido bloqueado em toda a rede Quintal do Espeto depois de uma ex-gerente da unidade de Santo André, no ABC paulista, tomar conhecimento sobre sua passagem pelo sistema prisional. Ele se queixa da falta de apoio do aplicativo no episódio.

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"Espero que essa ação na Justiça sirva para mudar tanto a consciência dos freelancers que precisam trabalhar, quanto das empresas que contratam e da Estaff que intermedeia, porque elas estão lidando com pessoas que sustentam filhos e que precisam viver com o mínimo de dignidade", justifica.

Procurada, a direção da Estaff afirmou que não poderia "antecipar nenhuma consideração acerca desse processo". Por email, o CLO (diretor jurídico) do aplicativo, Felipe Freitas, afirmou que "as defesas das empresas são protocoladas sob sigilo, e tal sigilo só é liberado pelo juiz no momento da audiência", agendada para julho.

Em nota, a assessoria de imprensa da Sapore informou que a empresa "emprega cerca de 18 mil pessoas em todo o Brasil, seguindo a legislação trabalhista vigente". Também afirmou que "a contratação de aplicativos de intermediação de mão de obra se dá quando há necessidade de reposição rápida".

Integral e Quintal do Espeto não se manifestaram até o fechamento deste texto. A reportagem será atualizada caso os posicionamentos sejam enviados.

Oliveira diz ter sofrido queimadura por manipular produto químico sem proteção
Oliveira diz ter sofrido queimadura por manipular produto químico sem proteção Imagem: Acervo pessoal

'Uber de garçons'

A Estaff se define como "a maior plataforma de contratação de profissionais de Hospitalidade". Segundo o CEO (diretor de operações), Leonardo Rocha, o aplicativo "aproxima pessoas interessadas em prestar serviços a estabelecimentos interessados em tomá-los". Em seu site, a empresa apresenta as funcionalidades de seu sistema: "gerencie escalas, desempenho, pagamentos e se previna de eventuais problemas trabalhistas".

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Bares e restaurantes pagam à plataforma um percentual sobre o valor das vagas abertas. Na outra ponta, os profissionais escolhem os jobs de sua preferência e recebem integralmente a remuneração anunciada no aplicativo, mas não são informados sobre quanto a Estaff cobra das empresas a título de comissão. O pagamento é depositado diretamente em uma conta corrente informada pelo trabalhador.

A plataforma não limita o número de jobs em empresas diferentes em um único dia, o que possibilita o acúmulo de quase 24 horas de trabalho. A estipulação de um tempo máximo de jornada é um dos principais pontos em discussão do Projeto de Lei de motoristas de aplicativo, em tramitação no Congresso Nacional.

Como em aplicativos similares, existem ferramentas para comentário e avaliação de desempenho entre ambas as partes. "Mas tem empresa que usa a ameaça de bloqueio [no aplicativo] como arma para coagir e explorar a gente", diz Oliveira.

Na avaliação de Laércio Benko, advogado que assina a ação movida por Oliveira, o papel da Estaff não se resume a uma mera intermediação. Isso porque o aplicativo atua na seleção de perfis dos profissionais recrutados e disponibiliza ferramentas para controle de horários e de pagamentos, diz ele.

Prints envidado por Oliveira mostram trabalho ininterrupto no mês de fevereiro e emendas de turno num total de 23 horas
Prints envidado por Oliveira mostram trabalho ininterrupto no mês de fevereiro e emendas de turno num total de 23 horas Imagem: Reprodução
Anúncios das vagas também especificam vestimentas para o trabalho
Anúncios das vagas também especificam vestimentas para o trabalho Imagem: Reprodução
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Além disso, existe uma subordinação dos trabalhadores às regras estabelecidas pela plataforma e pelas contratantes, afirma Benko. "A partir do momento em que a pessoa entra no estabelecimento, ela fica subordinada a uma série de ordens: tem que lavar esses pratos, tem que servir desse jeito, tem que fazer isso em determinada hora", exemplifica.

Até mesmo os anúncios das vagas ofertadas no aplicativo — que em alguns casos especificam o tipo de uniforme e os requisitos de aparência física, como "barba feita" — demonstram a existência de subordinação, avalia o advogado. "A Estaff também tem que ser responsabilizada pelo vínculo empregatício. É como uma empresa terceirizada fornecendo a mão de obra", compara.

De acordo com Renan Kalil, procurador responsável por uma coordenadoria do Ministério Público do Trabalho (MPT) especializada no combate a fraudes, recentes alterações na legislação trabalhista foram realizadas a pedido das entidades que representam bares e restaurantes.

A principal delas é o chamado "contrato intermitente". Criada pela Reforma Trabalhista de 2017, essa modalidade permite a prestação do serviço subordinada de forma não contínua, mas garante o pagamento de direitos trabalhistas de forma proporcional ao tempo trabalhado, além de contribuição para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).

"É difícil imaginar uma situação na qual um garçom ou uma garçonete possam ser contratados como autônomos, tendo em vista a dinâmica própria dessa atividade, em que os estabelecimentos possuem regras próprias de atendimento aos seus clientes", analisa Kalil.

Estigma

Oliveira demonstra um incômodo especial com o bloqueio na rede Quintal do Espeto. A decisão da gerente da unidade de Santo André de dispensá-lo teria acontecido depois de ela tomar conhecimento sobre o documentário "Cartas para um Ladrão de Livros".

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Disponível no Globoplay, e dirigido por este colunista em parceria com o jornalista Caio Cavechini, o filme narra a história de vida de Oliveira. "Colocaram uma foto minha na recepção e disseram que chamariam a polícia se eu voltasse lá", conta.

Para Karine Vieira, ex-detenta e fundadora do Responsa, instituto criado para ressocializar e reintegrar egressos do sistema penitenciário ao mercado de trabalho, e pelo qual Oliveira passou, o preconceito contra esse público ainda é realidade.

Ela explica que apenas vagas de trabalho muito específicas exigem atestado de antecedentes criminais. "Essa questão do estigma que a gente passa depois que sai do cárcere ainda vai levar algum tempo para ser retirada da sociedade", finaliza.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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