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Reportagem

Enfermeiros sentem na pele como longas jornadas geram acidentes de trabalho

Em setembro de 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, o governo da Inglaterra montou uma comissão para calcular a jornada de trabalho "ideal" nas fábricas de munição. Com a escalada do conflito, não era incomum que operários acumulassem 100 horas semanais nas linhas de produção, incluindo os domingos.

Depois de muita observação, as autoridades britânicas concluíram que, para homens, a carga deveria ser de no máximo 65 horas. Já no caso de mulheres e crianças (sim, elas também pegavam firme no batente!), a jornada não poderia superar 60 horas por semana.

A recomendação de reduzir o tempo de labuta tinha uma lógica: após um certo limite, o trabalhador trava, a produtividade desaba e o número de acidentes, claro, explode.

Narrada em um interessante artigo do economista John Pencavel, da Universidade de Stanford, essa história com cara de anedota cai como uma luva para ilustrar o cotidiano de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem no Brasil.

Juntas, essas três categorias lideram o ranking de acidentes de trabalho no país, com mais de 50 mil ocorrências no ano de 2022, segundo dados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) compilados pela plataforma SmartLab. Uma assustadora média de 138 registros por dia.

Num momento em que o debate sobre o fim do regime 6x1 e sobre os excessos de jornada dominam o noticiário e os feeds das redes sociais, a relação direta entre longos expedientes e acidentes de trabalho não vem recebendo a devida atenção.

Por aqui, os defensores da proposta têm se focado no impacto sobre a qualidade de vida das milhões de pessoas privadas de um fim de semana completo. Já os críticos batem na tecla de que a redução da jornada, sem diminuição dos salários, causaria aumento no custo do trabalho e redundaria, no fim das contas, em inflação.

Categorias que mais trabalham são as que mais se acidentam

Um didático levantamento da Repórter Brasil, republicado pelo UOL, mostra que, das 20 ocupações com mais notificações de acidentes em 2022, 12 também aparecem na lista das 20 categorias com o maior número de contratos de 41 horas ou mais.

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Na ponta do lápis, técnicos de enfermagem sofreram 36.532 acidentes naquele ano — campeões absolutos desse nada glorioso ranking. Já enfermeiros responderam por 8.687 registros e auxiliares totalizaram 5.488.

O leitor pode argumentar que o trabalho nessa área é, por natureza, de alto risco. O contato permanente com instrumentos cortantes e material biológico infectante expõe profissionais a uma série de lesões e doenças. Por isso, é essencial investir em treinamento e garantir Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados.

Tudo isso é verdade. Mas também é preciso levar em conta que profissionais da área da saúde estão submetidos a jornadas intensas.

A escala 12x36 — em que as pessoas trabalham doze horas seguidas e (supostamente) descansam por um dia e meio — é bastante comum nesse meio. Sem falar nos plantões de 24 horas.

Como mostram as pesquisas de John Pencavel e de diversos outros especialistas em saúde e segurança do trabalho, cansaço e perda de atenção potencializam acidentes.

Piso salarial de enfermeiro é R$ 4.750; Técnicos e auxiliares ganham menos

Existe ainda um agravante: o salário. Quem se lembra do imbróglio sobre o piso salarial dessas categorias, que se arrastou por anos no Congresso e no STF (Supremo Tribunal Federal)?

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Depois de muitas idas e vindas, a Lei Federal 14.434/2022 entrou em vigor, estabelecendo R$ 4.750 como piso para enfermeiros para uma jornada de 44 horas. Em tese, técnicos não podem receber menos de 70% desse montante. Já auxiliares têm metade desse valor como remuneração mínima mensal.

As regras se aplicam a servidores públicos e profissionais de entidades privadas que atendem ao menos 60% de pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde). No caso da iniciativa privada, o STF permitiu a "regionalização" do pagamento, por meio de negociações coletivas.

Ainda que o piso seja uma vitória da categoria, é difícil imaginar que, com essa faixa salarial, profissionais desse segmento realmente se deem ao luxo de realmente descansar por 36 horas, após uma jornada de 12.

Na vida real, eles acumulam turno atrás de turno e ultrapassam tranquilamente a duração "normal" preconizada pela Constituição, de 44 horas semanais.

Como os ingleses descobriram na já distante Primeira Guerra Mundial, longas jornadas são um prato cheio para acidentes. Os brasileiros da enfermagem que o digam.

Nota da redação: o texto foi atualizado às 16h20 para acrescentar que o STF autorizou o pagamento regionalizado do piso da enfermagem no caso dos trabalhadores da iniciativa privada

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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