O STJ e a bomba do ICMS da energia
O Superior Tribunal de Justiça, na quinta-feira, 22, deverá julgar o mérito do tema repetitivo n.º 986, que versa sobre a inclusão da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica (TUST) e da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica (TUSD) na base de cálculo do ICMS. A depender do resultado, uma bomba fiscal de R$ 110 bilhões poderá estourar na mão dos Estados.
Em 2022, o Ministro Gilmar Mendes conseguiu um pequeno milagre. O Grupo de Conciliação organizado com os Estados e a União, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), tratou da tributação dos combustíveis e da energia para redundar em um importante acordo federativo. Um dos pilares desse pacto a que se chegou era justamente o da garantia da incidência do ICMS sobre a TUST e sobre a TUSD.
O Grupo de Conciliação era necessário, vale dizer, porque a edição das Leis Complementares n.º 192 e n.º 194 viraram de cabeça para baixo o sistema tributário estadual e puseram em risco a sustentabilidade das suas contas. Em 2022, representando São Paulo, mostramos — repetidas vezes — que a dinâmica do ICMS já dava claros sinais de arrefecimento e que era apenas uma questão de tempo para estourar uma crise fiscal federativa.
No que se refere à TUST e à TUSD, o fato é que, desde março do ano passado, os contribuintes têm recolhido o ICMS sobre essas tarifas de energia, contando-as na base de cálculo. A razão é que, mesmo em caráter liminar, o STF decidiu nessa direção, como explicaremos. A decisão se deu quando da apreciação de demanda de um grupo de Estados a respeito da constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 194, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.195.
Para ter claro, o fornecimento de energia é remunerado pela tarifa de energia elétrica somada às tarifas de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição. Assim, todos os custos e encargos agregados quando do fornecimento de energia elétrica estão incluídos na base de cálculo do ICMS, nos termos do artigo 13, I da Lei Complementar n.º 87, a famosa Lei Kandir. As tarifas não existem no vácuo.
Tanto é verdade que, em 2022, ao editar a Lei Complementar n.º 194, o alvo do legislador foi justamente o artigo 3º, inciso X da Lei Kandir. O objetivo foi excluir da incidência do ICMS os serviços de transmissão e distribuição e os encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica, contrariando a própria Constituição Federal, artigo 155, § 4º, IV, b. Diz a alínea b: "poderão (as alíquotas) ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem, incidindo sobre o valor da operação ou sobre o preço que o produto ou seu similar alcançaria em uma venda em condições em livre concorrência". (Grifos nossos).
Como interpretar que determinados itens poderiam simplesmente ser retirados do valor da operação? Impossível. Daí porque foi necessário alterar a Lei Kandir para dizer exatamente isso e tentar garantir a exclusão das tarifas. Contudo, o legislador se esqueceu do disposto no artigo 34, § 9º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que explicita a incidência do ICMS sobre todos os elos da cadeia de energia, sendo a alíquota aplicada sobre o preço final. Não custa reforçar: sem previsão de qualquer tipo de abatimento.
Eis o texto do referido artigo: "Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação. (Grifos nossos).
Das razões de decidir externadas pelo STF, em fevereiro de 2023, é possível depreender que o conceito de operação engloba todo o consumo efetivo de energia, infraestrutura e serviços utilizados para viabilizar esse consumo. Não poderia ser diferente, já que as fases de geração, transmissão e distribuição da energia são indissociáveis e o custo inerente a cada uma delas compõe o preço final da operação.
Ao conceder medida cautelar na referida ADI n.º 7.195, de relatoria do ministro Luiz Fux, o STF suspendeu o dispositivo inserido na Lei Complementar n.º 194, por não reconhecer legítima a definição dos parâmetros para a incidência do ICMS, salientando que o termo "operações" remete não apenas ao consumo efetivo, mas a toda infraestrutura e às etapas intermediárias do processo de geração de energia para que esse consumo venha a se realizar.
Como se vê, os Estados apresentam uma tese bastante consistente e já reconhecida liminarmente pelo STF. A expectativa é que o julgamento pelo STJ siga a mesma direção. Aliás, é importante trazer alguns números para ilustrar os riscos associados a essa decisão.
Em São Paulo, por exemplo, sabe-se que já existem mais de 90 mil ações judiciais cadastradas envolvendo a temática da TUSD e da TUST. O valor anual estimado dessa arrecadação para o Estado alcança prováveis R$ 10 bilhões. O prejuízo para os Estados, em caso de decisão do STJ favorável aos contribuintes, poderia chegar a R$ 35 bilhões. Mas existe ainda o risco de os Estados serem obrigados a devolver a arrecadação do passado. Isso elevaria o montante para ao menos R$ 110 bilhões.
Eventual vitória do contribuinte seria, na verdade, uma derrota terrível para a sociedade. Sim, porque a falta desses recursos seria equacionada por meio do aumento da alíquota do ICMS, derrubando a atividade produtiva, o emprego e a renda. Alternativamente, se a conta fosse espetada na União, o financiamento do rombo com tributos federais ou elevação da dívida pública redundaria no mesmo resultado econômico negativo.
O STJ conhece certamente o cenário e sabe que o prolongamento da discussão delongaria a insegurança jurídica. Não é razoável supor que o Tribunal não enxergue a importância de desarmar essa verdadeira bomba fiscal.
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