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Graciliano Rocha

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Calote 'come' R$ 343 mi de fundos imobiliários e atinge 500 mil cotistas

Fundos imobiliários já vêm patinando desde o ciclo de alta de juros; agora, calote entrou na pauta da indústria - Getty Images
Fundos imobiliários já vêm patinando desde o ciclo de alta de juros; agora, calote entrou na pauta da indústria Imagem: Getty Images

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O prejuízo tomado por 500 mil detentores de cotas de quatro fundos imobiliários (FIIs) negociados em bolsa foi em parte causado por um calote dado por empresas controladas pelo mesmo grupo econômico que gere os fundos imobiliários.

Os fundos são Hectare CE (HCTR11), Devant Recebíveis Imobiliários (DEVA11), Tordesilhas (TORD11) e Versalhes Recebíveis Imobiliários (VSLH11). Entre quarta da semana passada, quando a inadimplência em seus portfólios veio a público, e o fechamento de ontem, os quatro fundos encolheram R$ 343 milhões. Desde o início do ano, esses ativos acumulam perdas de até 40%.

Falando de forma mais simples, quem captou dinheiro dos cotistas destes fundos emprestou parte desse dinheiro a empreendimentos imobiliários pertencentes - em parte ou integralmente - a empresas ligadas ao seu mesmo grupo econômico. Dois destes devedores estão inadimplentes.

As perdas dos cotistas se deram por meio de uma intrincada rede de empresas do mercado financeiro e do setor imobiliário controladas pelo empresário Marcos Jorge, através de um instrumento financeiro chamado CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários), que é basicamente um título de dívida baseado em imóveis e ativos ligados a eles.

  • O CRI é um título que gera um direito de crédito ao investidor. Ou seja, quem compra esse papel terá direito a receber juros do emissor e, no vencimento do título, receberá de volta o valor investido (principal).
  • Para quem emite, o CRI é um instrumento de conseguir recursos para financiar transações do mercado imobiliário. Trata-se de um empréstimo cujo lastro está em créditos imobiliários, como financiamentos residenciais, comerciais ou para construções, contratos de aluguéis de longo prazo.

Procurado, o grupo RTSC negou que tenha havido conflito de interesses e insistiu que as gestoras dos FIIs são prestadoras de serviço aos cotistas, tomando decisões de investimento de maneira independente, obedecendo a regulação em vigor.

Duas pontas do negócio

Na quarta-feira (29), a empresa Vórtx, administradora do Hectare CE, anunciou, em fato relevante, que sete CRIs em que tinha feito investimentos tornaram-se inadimplentes, tendo deixado de pagar os compromissos desde 20 de março. Trocando em miúdos, 30% do patrimônio líquido do FII tinha virado um mico em carteira; daí o valor da cota tomou um tombo, prejudicando quem adquiriu o FII.

Em pelo menos três casos, a holding RTSC está nas duas pontas do negócio, controlando tanto as emissoras de dívida (agora inadimplentes) quanto os fundos que compraram os papéis, com dinheiro dos cotistas. Na prática, o dinheiro dos investidores de um fundo terminou emprestado para outras empresas do mesmo grupo.

Resort do Lago

O que é: empreendimento turístico em Goiás
Quem é dono: Fundo Tordesilhas, FII negociado em bolsa gerido por empresa da holding RTSC
Quem comprou a dívida: Hectare, Devant e Versalhes, geridos por empresas da holding RTSC
Status da dívida: inadimplente

Circuito de Compras de São Paulo

O que é: imóvel que abriga a famosa Feira da Madrugada, no Brás, em São Paulo, concessão da Prefeitura de São Paulo
Quem é dono: o fundo XBXO, um fundo gerido pela R Capital, do grupo RTSC; a empresa que fez a securitização da dívida, Fortesec, também pertence ao grupo
Quem comprou a dívida: Hectare, Devant e Versalhes, geridos por empresas da holding RTSC
Status da dívida: Inadimplente

Gramado Park

O que é: conjunto de empreendimentos turísticos na Serra Gaúcha
Quem é dono: Parte dos imóveis tem como sócio o fundo Serra Verde, gerido pela R Capital, do grupo RTSC
Quem comprou a dívida: Hectare, Devant, Tordesilhas e Versalhes, geridos por empresas da holding RTSC
Status da dívida: na quarta (29) estava na lista dos CRIs inadimplentes, mas na sexta-feira o devedor anunciou que honraria os compromissos

Grupo nega conflito de interesses

Em nota ao UOL, o grupo insistiu que as gestoras são apenas prestadoras de serviço e afirmou que não há conflito de interesses porque as decisões são tomadas de maneira independente.

"As gestoras nas quais o Grupo tem participação são prestadoras de serviço que atuam de forma independente e são integralmente responsáveis pelos ativos investidos", diz trecho da nota enviada ao UOL.

"Nesse sentido, todas as decisões são tomadas de acordo com o regulamento desses fundos e supervisionadas por seus administradores. Essa prestação de serviço é feita para os cotistas desses fundos, que se tornam donos dos ativos ou credores dos CRIs", prossegue.

"Além disso, há um agente fiduciário que zela pelas decisões da securitizadora e um administrador que zela pelas decisões do gestor. Vale ressaltar que todas essas empresas são reguladas e suas atividades aprovadas pela CVM, Anbima e órgãos que regulam o mercado de capitais", afirmou a nota.

E conclui: "Todas as gestoras mantêm seus formulários de referências atualizados com total transparência, cumprindo as exigências dos órgãos reguladores. No caso do CRI Gramado Parks, uma assembleia foi convocada para que seja deliberada a execução deste papel, decisão que será tomada por todos os crizistas, pessoas físicas, jurídicas e fundos de investimentos com o objetivo de proteger o patrimônio e os interesses de seus investidores".

É o juro, estúpido

O IFIX, índice de referência de FIIs da bolsa brasileira, caiu 4% desde o início do ano. O índice leva em conta os maiores fundos imobiliários negociados no mercado. Este tipo de ativo tem enfrentado perdas porque há uma forte migração de investidores da renda variável para ativos de renda fixa por conta do ciclo de alta de juros.

Os quatro fundos imobiliários ligados à RTSC fortemente expostos aos CRIs que deram calote enfrentaram perdas de valor superiores ao índice de referência. Em seus regulamentos, um dos documentos disponíveis ao investidor, eles são fundos high yield, isto é, que prometem retornos maiores mediante tomada de riscos equivalente.

Hectare CE (HCTR11)

  • Número de cotistas: 211 mil
  • Perda de valor em 2023: -39%

Devant Recebíveis Imobiliários (DEVA11)
Número de cotistas: 133 mil
Perda de valor em 2023: -31,5%

Tordesilhas (TORD11)

  • Número de cotistas: 109 mil
  • Perda de valor em 2023: -43%

Versalhes Recebíveis Imobiliários (VSLH11)

  • Número de cotistas: 93 mil
  • Perda de valor em 2023: -33%

"Quando a taxa de juros estava em 2% [ao ano] e um fundo de high yield pagava 1% ao mês, todo mundo estava feliz. O conflito mesmo ocorre na hora que dá problema", disse à coluna o analista Daniel Nigri, dono da empresa de research Dica de Hoje e especialista independente na indústria de fundos imobiliários.

"No caso de inadimplência, vai executar a garantia do CRI, o que é do interesse do credor na maioria dos casos, ou vai procurar renegociar a dívida do ativo, que é do interesse do devedor? Uma ponta ou a outra vai acabar perdendo sempre", afirma.

Segundo ele, os investimentos dos fundos imobiliários estão descritos com clareza nos relatórios gerenciais.

Um dos casos que chamam a atenção é de uma emissão de dívida de uma rede de hotéis comprados por Marcos Jorge. O CRI Hope foi emitido em 31 de agosto de 2021. Três dias depois, em 2 de setembro, foi anunciada a compra do grupo GJP para o fundo R Capital, também integrante da holding de Marcos Jorge. Atualmente, o conglomerado de hotéis se chama Grupo Wish.

A dívida emitida pela rede de hotéis foi comprada com o dinheiro dos cotistas do Hectare e do Devant, geridos por empresas da holding de Marcos Jorge. O CRI Hope, instrumento da dívida dos hotéis, representa 14,88% do patrimônio líquido do HCTR11 e 7,99% do DEVA11, fechou um acordo com as gestoras de seu mesmo grupo econômico para reperfilar as dívidas no mês passado.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Em uma versão anterior, o colunista escreveu que a empresa Vórtx, administradora do fundo Hectare CE, pertencia ao grupo RTSC. É a Hectare, que gere o fundo do mesmo nome, que pertence ao grupo RTSC. Houve uma segunda imprecisão corrigida: o comprador da rede de hotéis GJP em 2021 foi o fundo R Capital, também integrante da holding de Marcos Jorge, não o empresário diretamente, como constava em versão anterior.