Recuperação da economia por enquanto não passa de propaganda enganosa
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Era previsível que uma "recuperação" da economia, quando o fundo do poço da atividade econômica fosse deixado para trás, deveria vir acompanhada de aspas, tal a magnitude da alteração nos parâmetros de medição da marcha econômica causada pela pandemia de Covid-19. Mas também era previsível que haveria quem fosse tentar se aproveitar da "recuperação" entre aspas para martelar a propaganda enganosa de que a economia rapidamente compensaria as perdas iniciais e retomaria trajetória de expansão.
As duas previsões, de fato, estão se confirmando. Os números da atividade em junho estão mostrando crescimento em relação a maio e abril, o fundo do poço dos impactos da pandemia. Com base de comparação tão deprimida, seria mesmo muito difícil que as informações de junho continuassem a apontar nova piora. Mas também seria difícil encontrar uma recuperação sem aspas ao cotejar esses indicadores com os seus níveis pré-pandemia.
Enquanto esta comparação mostrar que a atividade ainda está devendo, a recuperação tem de vir, obrigatoriamente, entre aspas. A verdade é que, quem olhar um gráfico com séries de dados mais completas, poderá mesmo ver um "V", como declara o ministro Paulo Guedes, acrescentando mais uma bravata à sua interminável lista de bazófias. Mas será um "V" capenga, manquitolando da perna da direita, menor do que a da esquerda.
Dentro do previsível estão aparecendo algumas surpresas. Não no ritmo da atividade, que continua não permitindo imaginar uma recuperação sem aspas. Mas nas tentativas de dourar a pílula da crise econômica. De uns dias para cá, pessoal graduado da área econômica do governo anda encontrando indicadores de uma retomada fora dos padrões conhecidos. É compreensível - que governo não é obrigado a exibir um otimismo profissional?
Na mesma toada, gente de departamentos econômicos de bancos e corretoras anda manobrando equações em que projeções anteriores de mergulhos profundos dão lugar a tombos menos acentuados. A ideia vendida é a de que o pior não será tão pior assim. Também é compreensível - que investidor vai fazer negócios e render taxas de corretagem para bancos e corretoras se as perspectivas forem mais que ruins?
Como a criatividade é a mãe da necessidade, indicadores não tradicionais estão vindo à cena para justificar essa retomada cheia de ressalvas. Em artigo no jornal "Valor", o economista-chefe do Itaú-Unibanco, Mário Mesquita, escreveu que, diante das limitações impostas pela pandemia, "fontes alternativas de informação" ganharam importância.
Muitos analistas de bancos e corretoras estão chamando a atenção, por exemplo, para o aumento da movimentação de pessoas nas cidades. Usam o dado como indicador positivo para a atividade econômica, mas, convenientemente, se esquecem que, de outro lado, com o contágio do Covid-19 ainda não controlado, esse índice pode expressar o inverso, um aumento do risco de novas e mais rígidas medidas de isolamento, com fechamento de estabelecimentos.
A maior novidade entre as "fontes alternativas de informação" veio do até aqui discreto secretário da Receita Federal, José Tostes. Ele trouxe à luz uma série de dados, que não eram do conhecimento público, que mostra a evolução do volume de dinheiro movimentado pelo comércio, com base na emissão de notas fiscais eletrônicas. De acordo com as informações divulgadas, em junho, houve crescimento de 10,3% sobre junho do ano passado na emissão diária de notas fiscais eletrônicas.
O número espelha recuperação sobre maio e abril e mostra que o total diário emitido já supera o de janeiro. Recuperação sem aspas, sem dúvida, mas restrita ao comércio eletrônico, que já vinha em crescimento acelerado, nos últimos anos, e agora montou na cauda de um foguete com a pandemia. Seria mais ou menos o mesmo que considerar o aumento do trabalho em home office como indicativo da expansão dos negócios no seu conjunto.
Basta saber, contudo, que o comércio eletrônico ainda não representa mais do que 10% do comércio total, para entender que a recuperação apontada volta a necessitar de aspas. O máximo que os dados das notas fiscais permitem concluir é que o comércio eletrônico pode ter substituído uma ainda pequena parte perdida do comércio em geral.
O caso da indústria não é menos ilustrativo. O setor cresceu 7% em maio sobre abril, o que foi cantado em coro afinado, mas com o devido esquecimento das páginas da partitura em que deveriam estar registradas as necessárias comparações com outros períodos. Avaliações do Iedi (Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial), que reúne a parcela mais moderna dos industriais brasileiros, considerando essas comparações, destacam que a "recuperação" anunciada em maio não pode vir sem aspas.
"Isso não significa que a recuperação já tenha se iniciado", registra a "Carta Iedi" desta terça-feira (7). "Tanto é que o nível de produção permaneceu 21% abaixo daquele de fevereiro de 2020 e 34,1% inferior ao pico histórico de maio de 2011". Ainda sofrendo os impactos da grande recessão de 2014-2016, mesmo com a "recuperação" de maio/junho deste ano, segmentos industriais carregam extensas perdas. O volume de produção de bens de consumo duráveis se encontra 77% abaixo do pico de junho de 2013 e o de bens de capital continua 57,9% menos do que o pico de setembro de 2013.
A recuperação entre aspas reflete um movimento natural de retomada depois que a atividade bateu no fundo do poço. Mas é incerto, para não dizer improvável, que essa retomada estatística tenha suficiente vigor para sustentar uma tendência consistente de crescimento econômico e alcance de novos picos.
Programas de suporte a pessoas, trabalhadores e empresas, com destaque para o auxílio emergencial de R$ 600 mensais, ainda que não consigam distribuir a totalidade dos recursos disponíveis, são fatores que ajudam a animar a economia. Seu poder de sustentar uma retomada firme, contudo, é limitado.
Contra essa tendência opera, em primeiríssimo lugar, um mercado de trabalho que vive um verdadeiro estado de calamidade. Recordes de contração no conjunto da força de trabalho, no número de desalentados e - incrível - até mesmo no contingente de informais tornam praticamente inviável a hipótese de uma recuperação mais rápida e forte.
Diante da inédita contração do mercado de trabalho, falta base para imaginar uma virada no consumo das famílias, o principal motor de expansão da economia brasileira. O mesmo raciocínio vale para os investimentos e o setor externo. A tendência é de, no máximo, crescer alguns poucos degraus acima do profundo poço para o qual a pandemia empurrou a economia brasileira.
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