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Orçamento sem transparência "envenena" regra do teto de gastos
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Quando há regras de controle em excesso, não há, de fato, controle algum. A velha sabedoria popular cai como uma luva na grande macarronada em que se transformou o conjunto de normas e limites criado para perseguir o equilíbrio das contas públicas. Mesmo com todas as vedações e imposição de limites, os desequilíbrios só se acentuam.
Depois que a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial foi aprovada, e transformada na Emenda Constitucional 109, são pelo menos 14 as regras de controle de despesas e das contas públicas em vigor no Brasil. Meta de resultado primário, regra de ouro e teto de gastos estão entre as mais conhecidas.
Essas regras de controle, de alguma forma, acabam de ser dribladas pelo acordo entre Executivo e Congresso para desencalacrar o Orçamento de 2021. Com a aprovação de um projeto de lei, que altera a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), mais de R$ 125 bilhões, cerca de 1,5% do PIB, dos gastos previstos para 2021 ficaram fora das regras de controle fiscal.
Com a manobra, a meta de resultado primário permanece em um déficit de R$ 247 bilhões, equivalente a 3,3% do PIB, quando deveria ter sido alterada para um rombo de R$ 372 bilhões, ou 5,5% do PIB. Os recursos, oriundos de créditos extraordinários, não afetariam o teto de gastos, mas cálculos da IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão de acompanhamento das contas públicas vinculado ao Senado, apontam para riscos de um estouro no teto este ano, com estimativas de um excesso de R$ 30 bilhões sobre o limite de gastos.
Para isso, basta que despesas, infladas - no caso das discricionárias, como investimento e custeio da máquina pública, de livre administração pelo governo -, ou subestimadas - como alguns gastos obrigatórios, como os dos benefícios previdenciários -, no Orçamento, acabem se comportando como estabelecido pela realidade. A falta de transparência é a marca do Orçamento de 2021, no qual governo e Congresso tentaram enfiar necessidades de gastos incontornáveis em razão da pandemia, emendas parlamentares majoradas e espaço para obras do governo no saco limitado das regras de controle de despesas públicas.
Diversos dribles foram aplicados nas normas de controle, mas, nos mercados financeiros, sempre tão ciosos dos riscos de descontrole fiscal, o pessoal parece ter fingido que não viu, e as medidas passaram quase sem repercussão. A cotação do dólar baixou na segunda-feira (19) e ficou praticamente estável nesta terça-feira (20), enquanto o Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, oscilou pouco, nos dois dias, mantendo a linha de 120 mil pontos. Até a curva de juros, indicador mais sensível dos humores dos operadores, chegou a cair na segunda-feira (19), dia em que o acordão fiscal foi sacramentado.
Teria a "Faria Lima" jogado a toalha, em relação ao avanço inevitável da dívida pública, assim como parece que o ministro Paulo Guedes engoliu o sapo de um acordo que deixa em aberto os limites de gastos extraordinários com a pandemia, o que ele não queria de jeito nenhum? "Mais provável que tenha prevalecido o entendimento de que não havia outra saída", diz a economista Julia Braga, professora da Faculdade de Economia, da UFF (Universidade Federal Fluminense). "A regra do teto de gastos, por exemplo, não é compatível com a situação extraordinária atual".
A verdade é que a ficção orçamentária, bem ao estilo Centrão, embrulhou a realidade. Para começar, como observou o TCU (Tribunal de Contas da União), o governo havia ignorado a pandemia de covid-19 na destinação de gastos para 2021, e não houve reserva de recursos para o Ministério da Saúde enfrentar a crise sanitária e humanitária. Com a evidente necessidade de assegurar os recursos, recorrer a truques e manobras para encaixar verbas extras foi só um passo.
O Orçamento de 2021 incorpora os espaços para créditos extraordinários, como os abertos fora do teto de gastos em 2020, por um decreto de calamidade pública e uma PEC, a do Orçamento de Guerra, só que sem decreto de calamidade e sem orçamento de guerra. Bem ou mal, a ficção em que se transformou o controle de gastos em 2021 atende à necessidade de dar suporte a vulneráveis, ao emprego e às empresas, sem a qual também a economia não conseguiria andar. Permanecem riscos, porém, e um deles é de que as despesas com o custeio da máquina pública acabem abaixo do mínimo suficiente para evitar um "shutdown" da administração.
Aceitar a fantasia orçamentária foi a saída pragmática para uma saia justa, no qual a exigência não devidamente prevista pelo governo de salvar vidas e a economia competia com as pressões do Centrão por emendas parlamentares. Nesse sentido, o "arranjo" fiscal, mesmo engrossando a dívida pública, parece ter sido entendido nos mercados como um mal menor. Até porque, em 2022, o teto de gastos poderá ressurgir da camuflagem em que está sendo colocado, com uma folga razoável. No ano eleitoral de 2022, essa folga poderá chegar a R$ 40 bilhões, segundo cálculos da IFI.
Tal espaço deriva da própria regra do teto, que prevê reajuste do total de gastos públicos pela inflação em 12 meses até junho do ano anterior. Para junho deste ano, a inflação, medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), de acordo com projeções consensuais no mercado, poderá avançar, em 12 meses, para 7% ou até 8%, bem acima da previsão de reajuste de grande parte das despesas. O problema é como reconstituir, no futuro, a realidade das rubricas infladas ou subestimadas na ficção orçamentária.
Driblar os limites do teto tem sido uma regra potencializada no ambiente marcado pela pandemia. A norma rígida e inflexível, na prática, está morrendo de uma "morte matada", mas não de um golpe só. Como nas cortes reais antigas, está sendo vítima de gradual envenenamento, levado a cabo, ironicamente, por seus próprios defensores.
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