José Paulo Kupfer

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Opinião

Plano de Milei de dolarizar Argentina é canto de sereia de final desastroso

Vencedor das eleições primárias na Argentina, Javier Milei, um economista de 52 anos, de cabeleira revolta e ideias de ultradireita, promete adotar medidas econômicas radicais para acabar com a hiperinflação que tem minado, ao longo de décadas, a economia do país vizinho. Dolarizar a economia e extinguir o banco central são as bases de sua proposta extremista para uma economia desregulamentada e sem interferências do governo, caso seja eleito em outubro, no primeiro turno, ou, novembro, no segundo.

Substituir a moeda local e soberana pelo dólar americano é tentação que costuma surgir em casos de graves surtos de inflação, em economias com fortes desequilíbrios estruturais, como é o caso da Argentina. Trata-se, porém, como mostra a história das aventuras do gênero, a partir da segunda metade do século passado, de um canto de sereias, na grande maioria dos casos, com final desastroso. A Argentina seria um caso de reincidência na aventura.

Poucos trocam moeda por dólar

A pergunta que não pode deixar de ser respondida é a seguinte: se dolarizar fosse uma solução tão eficaz quanto pode parecer, por que poucos países se aventuram em fazer do dólar sua moeda? A resposta tem um tom de obviedade acaciana: é que as consequências vêm depois.

A dolarização da economia retira a possibilidade de que o governo execute qualquer política monetária. Sem poder emitir sua própria moeda, o país terá de recorrer a uma série de manobras para garantir a oferta de dólares suficiente para atender à demanda pela moeda, permitindo o desenvolvimento sem percalços da atividade econômica. O resultado, numa avaliação benigna, não tem sido dos melhores.

É inevitável, nesses casos, que a dívida externa seja pressionada e observe tendência a aumentar. Uma economia atrelada ao dólar terá de obter dólares com saldos na balança de comércio com o exterior, venda de ativos a estrangeiros ou empréstimos externos. Terá, portanto, de conviver com juros altos, capazes de atrair esses recursos, o que configura um remédio com o grave efeito colateral de frear a atividade econômica.

Roteiro começa bem e acaba mal

Dolarizar significa, obrigatoriamente, manter regime cambial fixo. Diferente do regime de câmbio flutuante, em que, por definição, a cotação do dólar flutua de acordo com oferta e demanda da moeda, como adotado no Brasil, no regime fixo, a taxa de câmbio é mantida com intervenções do governo no mercado cambial, injetando ou retirando moeda estrangeira de circulação.

Com tudo isso, o roteiro de uma economia que adota o dólar como moeda oficial é bem conhecido. Começa com queda abrupta da inflação, parece que será um sucesso, mas, aos poucos, com a necessidade de manter fixa a taxa de câmbio, e a taxa de juros nas alturas, para atrair dólares, a dívida externa tende a crescer e a economia a fraquejar.

Para evitar essa trajetória de endividamento, a política fiscal precisa se tornar rígida e contida ao máximo, com a produção de superávits, que reduzam o endividamento geral. O resultado, quando não ocorre colapso dos pagamentos da dívida em moeda estrangeira, se traduz no reforço de uma tendência de estagnação econômica.

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Equador dolarizou e ficou na rabeira do crescimento

São poucos, por isso, os casos de adoção do dólar americano como moeda oficial fora, é claro, dos Estados Unidos. Países com pequenos territórios, poucos habitantes e economia restrita convivem relativamente bem transacionando com dólar. Mas fora desse nicho estreito, os riscos acabam sendo maiores do que os benefícios.

Um caso tido como de sucesso é o do pequeno Panamá. A moeda local, balboa, é mantida na paridade de 1 para 1 com o dólar. O país tem 4 milhões de habitantes, área de 75 mil quilômetros quadrados, um pouco maior do que a Paraíba, e uma economia de apenas US$ 70 bilhões, equivalentes a pouco mais de 2% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro.

Outro caso de dolarização, este radical, é o do Equador. O país adotou o dólar como moeda em 2000, controlou a inflação, mas a economia cresce pouco, mesmo em relação aos vizinhos sul-americanos, também quase sempre às voltas com atribulações econômicas. A renda per capita equatoriana, em 2019, em valores constantes, era inferior à de 2012.

Plano Real foi uma dolarização "soft"

Existem formas de dolarização sem substituir a moeda local pelo dólar, como as experiências, na própria Argentina, com o plano de conversibilidade do peso ao dólar, em 1991, e o Plano Real, no Brasil, em 1994. Sim, o Plano Real foi uma dolarização "soft" da economia, que usou a moeda americana como âncora dos preços.

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A "dolarização" ocorreu com a conversão, em 30 de junho de 1994, da então moeda cruzeiro real para a nova moeda, o real, pela cotação do dólar naquele dia. Com a conversão do cruzeiro real à cotação de CR$ 2.750, o real nasceu, em 1º de julho, valendo um dólar.

Da adoção do real até janeiro de 1999, quando o regime de câmbio fixo, vigente no período, foi substituído pelo de câmbio flutuante, a taxa de câmbio variou dentro de uma banda relativamente estreita. A substituição do regime de câmbio e da âncora dos preços, do dólar para o sistema de metas de inflação, veio na esteira de uma grande crise cambial.

Se Javier Milei for eleito e, de fato, cumprir a promessa de adotar o dólar como moeda corrente no país, a Argentina estará radicalizando a tentativa de estabilizar a economia, com dolarização, implementada pelo ministro Domingo Cavallo, no governo do peronista Carlos Menem, em 1991.

Tanto no caso argentino, como no brasileiro, o choque monetário derrubou a inflação, mas exigiu a busca de recursos em dólar, para manter a paridade cambial, com altas nas taxas de juros. O efeito colateral da elevação dos juros foi, principalmente, frear a economia.

Na Argentina, há temor de confisco

No Brasil e na Argentina, a necessidade de dispor de recursos externos para bancar a paridade com o dólar contribuiu para a trajetória explosiva da dívida externa e levou à queima das reservas internacionais. Nos dois casos, a escalada da dívida externa terminou em moratória dos pagamentos e socorro emergencial do FMI (Fundo Monetário Internacional), com empréstimos concedidos sob condição de cortes profundos nos gastos públicos e controle fiscal rígido.

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Com a promessa de dolarização, Milei repete tradição argentina de tentar saída heróicas para a hiperinflação e a desestabilização da economia. Ainda que os argentinos mantenham, historicamente, reservas privadas em dólar, e negociações na moeda americana sejam consentidas no dia a dia, o risco de falta de dólares para bancar a dolarização aumenta o temor de que, mesmo com a negociação de novos empréstimos do FMI, e a atração de de dólares com juros altos, tenha de haver algum tipo de confisco.

Ultraliberal na economia, mas...

A ver se o candidato que lidera as pesquisas será eleito e, caso eleito, se adotará, na economia, o que promete. Milei é um ultraliberal que, contraditoriamente, anuncia, por exemplo, a intenção de proibir negócios com a China e outros países "comunistas", no que se traduziria por uma forte intervenção na economia. Apesar do tom messiânico de seus discursos — e talvez por isso mesmo — não custa pagar para ver o que fará de verdade se chegar à Casa Rosada.

Quem viveu o governo Bolsonaro, no Brasil, já pode ter uma ideia do que se passaria na economia do vizinho. Um discurso ultraliberal de desregulação de mercados, que, na prática, se concretiza com intervenções violentas no funcionamento dos mercados. O pior dos mundos, que faria a economia viver entre vacilos e aos trancos e barrancos, como se deu no Brasil.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • A taxa de câmbio no Brasil não permaneceu fixa do lançamento do Plano Real até janeiro de 1999, como informado anteriormente. No período, a taxa de câmbio variou dentro de uma banda. O que permaneceu sem alteração durante o período foi o regime de câmbio fixo então adotado. A informação foi corrigida.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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