José Paulo Kupfer

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Opinião

Milei já prepara terreno para estelionatos eleitorais em série

A vitória incontestável do economista Javier Milei, no segundo turno das eleições presidenciais, neste domingo (19), levará a Argentina a mais um experimento político e econômico, como os que o país vizinho tem colecionado nos últimos 60 anos. Com a economia em frangalhos e a situação social em acelerado processo de deterioração, a Argentina conhecerá uma transição rápida, até a posse do novo governo em 10 dezembro, e um intensificação das incertezas quanto a seu futuro.

Não é difícil antecipar que, se for cumprir suas principais promessas de campanha, Milei programou um encontro marcado com o fracasso econômico e, em consequência, com instabilidades políticas. Pouco mais de 50 horas depois de eleito, contudo, o futuro presidente vem dando sinais de que, ao retorcer e moderar o discurso anarcocapitalista com o qual chegou à presidência, poderá promover estelionatos eleitorais em série.

A mudança no penteado, agora ainda volumoso, mas muito menos rebelde, já na reta final da campanha, foi o primeiro sinal de que o Milei na Casa Rosada comporá uma "persona" diferente e mais comportada do que a exibida na disputa eleitoral.

Projetos radicais podem ser maquiados

Pouco provável que dolarização e fechamento do Banco Central, carros-chefes das propostas de Milei para recuperar a economia, sejam implementados nas versões puras que foram vendidas na campanha eleitoral. Além dos empecilhos da conjuntura econômica — a Argentina não dispõe de reservas em dólar para sustentar uma dolarização —, há barreiras institucionais.

Milei venceu as eleições presidenciais, avançou nas legislativas, mas está muito longe de uma maioria no Congresso argentino. Mesmo com apoio da totalidade dos eleitos por partidos que o apoiaram no segundo turno, o que é difícil de acontecer, não terá votos para promover reformas tão radicais.

O que é possível prever, nestas circunstâncias, é que seus projetos extremistas, se permanecerem, terão de ser adotados em ritmo mais lento, dificilmente no curto prazo. Muita chance de que passam por alguma maquiagem, moderando suas características mais radicais.

Dolarização não tem final feliz

É lícito especular que Milei manobrará para transformar suas propostas numa espécie de programa cenográfico de fachada. Ou que tentará se valer dos encantos da democracia direta, recorrendo a plebiscitos populares para sancionar medidas que não passariam no Congresso, a exemplo do que, no Brasil, o então presidente Fernando Collor tentou algumas vezes sem sucesso. Um namoro com o autoritarismo, apesar do discurso libertário, deveria constar do cardápio das hipóteses possíveis.

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Mesmo que Milei, no campo econômico, conseguisse emplacar uma dolarização pura, os resultados seriam incertos, para não dizer que as perspectivas são de mergulho da economia ainda maior no fundo do poço em que se encontra. Dolarizar é uma medida de desespero, cujo roteiro é conhecido. Spoiler: o final não é feliz.

Um país que não pode emitir dólares só obtém a moeda, para fazê-la circular com saldo na balança comercial, uso de reservas cambiais acumuladas ou empréstimos em dólares. Mesmo a Argentina, importante exportadora de commodities, não teria saldos suficientes para o fluxo de dólares necessário, e sabidamente não dispõe de reservas em dólares.

Efeitos colaterais negativos

Nesse ponto, chama a atenção o discurso de Milei de rejeição de negociações comerciais com países "comunistas" — aqui ele cita nominalmente China e Brasil, os dois principais parceiros da Argentina. Trata-se de mais uma bravata com jeito de que será devidamente jogada no saco das ideias que "não eram bem assim". Uma sinalização dessa desconversa veio com a declaração segundo a qual empresas podem negociar com esses países — como se não fossem empresas que fizessem negócios no comércio exterior.

O recurso ao financiamento externo, a saída possível, acabou quebrando o país, na versão anterior da dolarização, durante o governo do peronista Carlos Menem, na primeira metade dos anos 90 do século passado, com o plano de conversibilidade. Nesta segunda aventura, com a mesma receita, o enredo não parece ter alicerces para ser diferente e pode terminar com novos recursos ao FMI (Fundo Monetário Internacional), no qual, por sinal, a Argentina já está pendurada.

Para reduzir a procura por dólares escassos, o mecanismo de ajuste é a taxa de juros. Os juros têm de permanecer altos, não só para equilibrar o fluxo de moeda, mas também para atrair capitais externo. O principal colateral negativo se traduz pela instalação de uma recessão econômica de longa duração. Um outro efeito colateral é o reforço de uma trajetória explosiva para a dívida externa.

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Poucos adotam remédio da dolarização

Uma indicação de que o remédio extremo da dolarização não funciona contra a doença de uma economia em grande desequilíbrio é a baixa adesão ao tratamento. Fora dos Estados Unidos e de seus territórios no exterior — caso de Porto Rico, Samoa Americana e a ilha de Guan —, apenas uma dezena de localidades adotam o dólar como moeda.

São, na maioria, ilhotas no Pacífico ou no Caribe, com populações e extensões territoriais micro ou muito pequenos. Dos países que o dólar foi adotado como moeda, os maiores são Equador e Panamá.

Ainda assim são países relativamente pequenos. O Panamá tem somente 4 milhões de habitantes, área de 75 mil quilômetros quadrados, um pouco maior do que a Paraíba, e uma economia de apenas US$ 70 bilhões, equivalentes a 2% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. No país, a moeda local, balboa, é fixada em paridade com o dólar.

O Equador adotou o dólar, em substituição ao desvalorizado sucre, em 2000. O país controlou a inflação, mas não conseguiu contornar o baixo crescimento e desequilíbrios fiscais. A renda per capita equatoriana, em 2019, em valores corrigidos, era inferior à de 2012.

Dolarizar agora a Argentina, embora os argentinos poupem em dólares e já tenham passado por processos de dolarização, é outra história. O país tem 45 milhões de habitantes e um economia de US$ 500 bilhões, integrados num federalismo razoavelmente forte. Não por coincidêcia, Milei tem sido rápido em dar sinais de que pode revirar seus planos mirabolantes para ações mais convencionais. Poucos dias depois de eleito, numa sequência de entrevistas a emissoras de rádio, afirmou, por exemplo, que a inflação só será debelada em dois anos.

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Uma dolarização mais pura e radical, embora possa produzir efeitos colaterais devastadores, costuma derrubar a inflação em prazo muito mais curto. Ou seja, Milei já sinaliza que acabará não fazendo, pelo menos de início, uma dolarização radical.

Banco Central com outro nome

Também é difícil que cumpra a promessa de acabar com o Banco Central. A principal função de um banco central é definir e executar a política monetária (política de juros), o que não mais seria o caso, pois o controle da moeda, numa dolarização radical, é terceirizado para o Fed (Federal Reserve, banco central americano).

Mas há outras funções, típicas de agência reguladora de bancos e instituições financeiras, que tornam BCs indispensáveis. Tanto isso é verdade que os países da zona do euro, embora transacionem a mesma moeda, além de manter o BCE (Banco Central Europeu), continuam, cada um, com seu próprio BC.

Dificílimo imaginar que Milei chegará ao extremo de deixar o funcionamento do sistema bancário sem nenhum controle ou supervisão. Uma possibilidade é que transfira as funções de regular e fiscalizar o setor financeiro a uma entidade com essas mesmas funções, mas com outro nome — por exemplo, um IGF (Instituto de Governança Financeira), ou alguma coisa do gênero.

Duas ações clássicas de lideranças ultraliberais e populistas alçadas ao comando de um país, como Milei, é acelerar privatizações e cortar gastos com o serviço público. O presidente eleito já anunciou a reprivatização da petroleira YPF e de empresas públicas de comunicação social. Essa é a parte mais fácil do programa.

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Cortes simbólicos

Outra medida do repertório ultraliberal e populista é promover uma redução drástica do número de ministérios. Milei deve seguir a prescrição, deflagrando seu "plano motoserra", que prevê derrubar os gastos públicos, abrindo espaços para o setor privado, e cortar o número de ministérios de 18 para oito.

Será preciso, contudo, verificar o que de fato será cortado, e não apenas incorporado a outros organismos, mais inchando do que racionalizando as diversas áreas governamentais. O exemplo recente do hipertrofiado ministério da Economia, no Brasil, serve de referência para o supérfluo, mas com grande carga simbólica, da medida.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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