José Paulo Kupfer

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Opinião

Bagunça deixada por Bolsonaro explica déficit recorde nas contas públicas

Tem coisas, como se sabe, que não são bem o que parecem. Na economia, situações desse tipo são até mais ou menos comuns. O déficit fiscal primário de 2023, por exemplo, é uma dessas coisas.

No literal das contas públicas, em seu primeiro ano do terceiro mandato presidencial, o governo Lula gastou R$ 230 bilhões além do que arrecadou. O "rombo", correspondente a 2,1% do PIB, é recorde.

Trata-se do maior déficit fiscal desde o registrado em 2020, ano excepcional da pandemia, e o segundo maior em mais de 25 anos, com base na série histórica iniciada em 1997. A perspectiva é de que o déficit fiscal do conjunto do setor público, incluindo estados, municípios e estatais, no ano passado, chegue a R$ 250 bilhões, equivalente a 2,3% do PIB.

Represamentos e adiamentos de gastos

Mas essa impressão de descontrole não traduz a realidade. Mais da metade do déficit de 2023 é resultado da arrumação de parte da bagunça nas contas públicas deixada pelo governo Bolsonaro.

Entre congelamento de despesas — alguns criminosos, como é o caso da desidratação radical do programa de merenda escolar —, manobras contábeis e calotes puros e simples, Bolsonaro, e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, fecharam 2022 com um superávit fiscal primário de 0,5% do PIB. O resultado esconde uma vasta lista de represamentos e adiamentos de despesas.

Nas explicações que deu sobre o déficit recorde de 2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, concentrou-se no pagamento de R$ 92 bilhões em precatórios empurrados para frente por Guedes, e nos R$ 27 bilhões em reposições de perdas de estados e municípios com cortes de ICMS, promovidos no governo anterior, para tentar baixar a inflação na marra.

Consequência da contenção forçada

Excluídos apenas esses dois gastos, o déficit primário recuaria para pouco mais de 1% do PIB. Mas o rol das camuflagens e de represamentos de gastos é muito mais amplo.

Ao longo de seus quatro anos de governo, por exemplo, Bolsonaro congelou o salário mínimo, reajustando apenas seu valor monetário pelo índice de inflação. Também congelou salários dos servidores públicos. Durante seu mandato, cortou gastos essenciais em diversas áreas, entre as quais Saúde, Educação e Habitação.

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Relatórios das equipes de transição, na passagem de governos, em fins de 2022, apontavam consequências da contenção forçada de gastos, no governo Bolsonaro. Algumas delas:

Nos três anos anteriores, o percentual de crianças na escola que não conseguem interpretar textos subiu de 50% para 70%;

A cobertura da vacina contra poliomielite, em crianças até quatro anos, caiu de 100% para 70%;

A hospitalização de crianças com insuficiência alimentar aumentou em 11%, alcançado o mais alto índice em 14 anos;

Mais da metade da população brasileira, um contingente de mais de 125 milhões de pessoas, representando quase 60% do total, estava vivendo às voltas com algum tipo de insegurança alimentar — os estoques reguladores de alimentos foram zerados no governo Bolsonaro;

Foram zeradas as contratações na faixa 1 — famílias com renda mensal até R$ 1,8 mil — do programa Casa Verde Amarela, versão bolsonarista do Minha Casa, Minha Vida.

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Descompressão de despesas

O déficit primário de 2023 reflete também a irrealidade do Orçamento elaborado para aquele ano pela equipe de Guedes. Mesmo com diversas rubricas comprimidas, o governo Bolsonaro aprovou, para 2023, déficit de R$ 66 bilhões.

Apesar das promessas, o Auxílio Brasil, versão do governo Bolsonaro para o programa Bolsa Família, não previa a concessão de R$ 600 mensais para o benefício, mas de R$ 400. Manter o auxílio no valor prometido por Bolsonaro, e reafirmado por Lula na campanha eleitoral, custou R$ 50 bilhões aos cofres públicos, em 2023.

Para descomprimir despesas congeladas, outros gastos tiveram de ser feitos. Alguns exemplos:

O reajuste do salário mínimo em maio de 2023 consumiu R$ 5 bilhões no ano;

Também o reajuste da faixa de isenção do Imposto de Renda exigiu aporte de R$ 3 bilhões;

Pouco menos de R$ 9,5 bilhões foram gastos, no ano passado, para suportar o reajuste de 9% concedido em maio a todos os servidores públicos federais, depois de quatro anos sem reajuste.

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Receita menor em 2023

O lado da arrecadação, que cresceu menos do que esperava o governo Lula, e, assim, contribuiu para aumentar o déficit fiscal, também foi impactado pela herança de ações atípicas da dupla Bolsonaro/Guedes.

Apesar dos esforços de Haddad para ampliar as receitas públicas, em que se destacam os R$ 26 bilhões apropriados de contas antigas e inativas do PIS/Pasep, a receita total do governo federal recuou o equivalente a 2,8% do PIB, em 2023. A maior perda, em relação a 2022, foi na rubrica "concessões, dividendos e royalties de petróleo", com recuo de mais de 20% entre um ano e ano. Não houve, em 2023, o perigoso esfolamento de recursos de estatais, forçadas a fornecer receitas ao governo, promovido por Bolsonaro.

A correção dos desarranjos nas contas públicas deixados por Bolsonaro não significa que, feitos os ajustes, a situação fiscal esteja resolvida. As demandas de gastos públicos sociais continuam elevadas, assim como a necessidade de manter/ampliar a infraestrutura produtiva, tarefa em parte a cargo de governos.

O governo Lula, sob a condução de Haddad, tem procurado atender à pressão por gastos públicos com reforço na arrecadação. A estratégia, contudo, tem limites — limites até estreitos pela forte oposição no Congresso a projetos de elevação de tributos e impostos.

Déficit cairá em 2024

De todo modo, a situação fiscal caminha para uma etapa de mais normalidade. Além de medidas de reforço de receitas, concorrem para isso as iniciativas de cortes de gastos, principalmente nas concessões de benefícios sociais a quem não deveria estar entre os beneficiados. Pente-fino têm sido passado na Previdência Social e no programa Bolsa Família.

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No caso do Bolsa Família, por exemplo, do total de 56 milhões de beneficiários, cerca de 4 milhões, ou 7% do total, tiveram o benefício cancelado, enquanto outros cinco milhões de benefícios estão em análise. Aqui também o inchaço do Auxílio Brasil bolsonarista é parte das razões que sustentam o esforço de arrumação e redução de despesas.

O déficit primário em 2024, tudo isso considerado, será menor do que registrado em 2023, mesmo que não seja cumprida a promessa de equilibrar despesas e receitas no ano, e a meta de déficit zero seja alterada. Projeções indicam que o resultado final de 2024, em relação PIB, poderá ficar abaixo de metade do registrado em 2023.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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