José Paulo Kupfer

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Opinião

Delfim foi personagem complexo; errará quem fizer julgamento simples dele

É impossível descrever e classificar o economista Antonio Delfim Netto, que morreu nesta segunda-feira (12), aos 96 anos, sem recorrer a adversativas. Intelectual de espírito pragmático, aliando formação técnica com ambição de poder, somou contradições ao longo de uma vida pública que se estendeu por quase 60 anos. Acumulou motivos para poder ser considerado o maior economista brasileiro desse período.

Delfim foi protagonista de uma fase marcante da vida e da economia brasileiras, de meados dos anos 60 a meados dos anos 80 do século 20, e continuou influente por mais três décadas, até há poucos anos, quando se retirou, por motivo de saúde, da vida pública.

Artífice do "milagre econômico"

Ministro em três governos militares, Delfim foi o artífice do "milagre econômico" do início dos anos 70 do século 20, período de crescimento econômico acelerado, chegando ao recorde de 14% no ano de 1973. Mas legou uma herança de hiperinflação e calotes da dívida externa e contribuiu para ampliar ainda mais a concentração de renda no país.

Entendia ser o crescimento econômico o objetivo fundamental da economia, tendo sido, por isso mesmo, um crítico persistente dos juros altos na economia brasileira. A propósito dos resultados desiguais do "milagre" — muito crescimento, mas com os resultados concentrados em poucos —, Delfim negou a vida inteira ser autor da célebre frase atribuída a ele, segundo a qual era preciso fazer o bolo crescer antes de distribuí-lo.

Do AI-5 à redemocratização

Homem forte na economia da ditadura militar, seu nome está indelevelmente gravado no AI-5 (Ato Institucional-5), do qual nunca mostrou arrependimento e era o último signatário vivo. O AI-5, que deu passagem a prisões, torturas e assassinatos de adversários políticos do regime, franqueou a adoção das medidas que levaram ao sucesso temporário da política econômica. Mas Delfim também soube transitar para a democracia, com voz ativa e respeitada no debate político e econômico depois da redemocratização, chegando a ser conselheiro informal de Lula, principalmente quando o atual presidente exerceu seu segundo mantado, entre 2005 e 2010.

De origem humilde, vindo de uma família de imigrantes italianos, Delfim deixou marcas relevantes como pesquisador e professor universitário, contribuindo decisivamente para a inclusão da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis, da Universidade de São Paulo) entre os centros acadêmicos brasileiros de excelência em economia. Mas também destacou-se como político, tendo sido eleito deputado federal por cinco vezes, inclusive com participação de peso na Constituinte de 1988.

Foi ainda embaixador na França, entre 1975 e 1978, uma espécie de exílio dourado imposto pelo então presidente, general Ernesto Geisel, que não gostava de Delfim. Voltou, no governo do general João Figueiredo, o último da ditadura, como ministro da Agricultura, e depois do Planejamento, numa substituição tumultuada do economista Mário Henrique Simonsen. Ficou no posto, comandando a economia, até a transferência de governo para José Sarney, em 1985, no início da redemocratização.

Já tendo sido acusado de corrupção nos tempos de embaixador em Paris, Delfim foi citado em duas fases da Operação Lava Jato. Mas a defesa do ex-ministro alegou que as acusações mencionavam serviços legais da consultoria, que manteve desde que deixara o governo Figueiredo.

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Cinismo e pragmatismo

Somando todas essas e outras contradições, Delfim foi uma personalidade complexa e fascinante, dono de uma inteligência exuberante, que se refletia na rapidez de raciocínio e numa arguta capacidade de análise, sempre envolta em tons sarcásticos, na fronteira do cinismo e do amoralismo. Como condutor da economia, agregou um desconcertante pragmatismo a essas características.

Acusado, por exemplo, de manipular índices de inflação, Delfim repelia a acusação, mas não negava que tentava interferir na formação de preços, quando a inflação ameaçava sair do controle. São famosos seus esforços em promover desvios de produtos de outras localidades ou deflagrar operações emergenciais de importações — neste caso, com maior frequência de feijão preto —, para abastecer especificamente o mercado da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que pressionava empresários a congelar preços.

É que, na época, o índice oficial de inflação incluía a variação do ICV-FGV (Índice de Custo de Vida, da Fundação Getúlio Vargas), calculado apenas no Rio de Janeiro, onde o feijão preto é mais consumido na dieta cotidiana e tem peso elevado no indicador. De todo modo, a inflação de 1973, de 15,5% foi depois corrigida para mais de 20%.

Czar e capo

"Czar da economia", Delfim promoveu o "milagre econômico", manejando a economia sem restrições orçamentárias ou de crédito, condição assegurada pela repressão da ditadura a discordâncias e protestos. Do outro lado da moeda, enfrentou crises globais de grandes proporções, com reflexos negativos profundos na economia brasileira.

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Foi o caso da primeira "crise do petróleo", deflagrada em 1973, que elevou os preços do produto em mais de 400% e desarranjou a economia em todo o mundo. O aumento de preços forçado pelos países produtores de petróleo está na origem da explosão inflacionária nos Estados Unidos e outros países, que levou o Fed (Federal Reserve, banco central americano) a promover uma elevação extrema da taxa de juros a 20% ao ano, em 1979.

Esta esticada radical nos juros americanos, por sua vez, está na origem da crise da dívida externa global, que começou com um calote do México e se espalhou pelos países emergentes, entre os quais o Brasil. No comando da economia, Delfim foi obrigado a conduzir — e descumpriu — sucessivos acordos de reestruturação da dívida externa brasileira com o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Do "milagre" ao país "quebrado"

No fim de tudo, entregou tanto o "milagre econômico" à ditadura quanto um país "quebrado" no encerramento do regime, com dívida externa elevada, reservas cambiais negativas e inflação acima de 200% ao ano.

Além de "czar da economia", Delfim foi um "capo" ao estilo dos chefes mafiosos, no comando dos ministérios que ocupou. Suas equipes, formadas por ex-alunos na FEA-USP e outros agregados, reuniam pessoas de formação econômica sólida e extrema lealdade ao chefe.

Esses economistas ficaram conhecidas como os "Delfim Boys", numa alusão aos seguidores do economista americano Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago, expoente do liberalismo econômico e laureado com o Prêmio Nobel de Economia. O respeitado economista Affonso Celso Pastore, morto em fevereiro, ex-presidente do Banco Central de 1983 a 1985, e negociador da dívida externa no período em que Delfim chefiou o Planejamento, foi o mais notável representante do grupo.

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Desconfiança em relação a teorias

Profundo conhecedor dos processos econômicos, embora formado no campo da economia liberal mais ortodoxa, Delfim nutria evidente desconfiança em relação às teorias e doutrinas econômicas, talvez por sua inclinação ao pragmatismo,. Era descrente da eficiência absoluta dos mercados, mas também fazia restrições às teorias desenvolvimentistas.

A ousadia de julgar personagem tão complexo, em resumo, terá o mesmo destino da velha máxima, de acordo com a qual para todo problema complexo há sempre uma solução simples e totalmente errada. Delfim foi, sem nenhuma dúvida, personagem complexo. Qualquer julgamento simples desse personagem corre imenso risco de ser equivocado.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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