Mariana Grilli

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Opinião

De Chico Bento a 'Descer pra BC', os estereótipos do produtor rural

O malvado, o caipira e o "agroboy". Esses são três estereótipos que resumem a figura do produtor rural na indústria audiovisual no país — e não necessariamente contribuem para a imagem que o setor produtivo quer passar à sociedade urbana.

Fã da Turma da Mônica que sou, fui ao cinema assistir a "Chico Bento e a goiabeira maraviosa". Foi inevitável reparar que, dentro de uma linguagem lúdica, é passada a mensagem de que "o grande fazendeiro" quer destruir até o último pé de árvore em benefício próprio.

Por conhecer tantos produtores rurais pelo país, eu me vi questionando esse estereótipo passado no filme. Até me lembrar que ele é baseado em um personagem criado em 1961. À época, o Brasil dependia bastante da importação de alimentos, e a presidência de João Goulart (1961-1964) definiria a agricultura como estratégica ao desenvolvimento do país.

Chico Bento foi criado, portanto, no início das discussões sobre a reforma agrária e a rivalidade entre o dono das terras e o "pequeno" agricultor. O Brasil, hoje em dia, é bem mais complexo do que isso, e estereotipar qualquer persona do campo é delicado. Nem todo "grande fazendeiro" é malvado e contra o meio ambiente. Nem todo produtor de pequeno porte é um caipira desinformado.

No filme — desculpem o spoiler —, há ainda outro estereótipo: o agroboy. O filho do fazendeiro é uma criança, que reproduz as falas do pai, copia os trejeitos e tem um funcionário à disposição para andar de lancha. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência, haja vista o clipe da música "Descer pra BC".

Cantada pela dupla Brenno e Matheus, a letra diz que os herdeiros da fazenda querem sair da zona rural e curtir a vida nas praias de Balneário Camboriú (SC). Por trás da letra e do clipe, é curioso pensar que essa figura do "agroboy" se espalhou pelo país. Ao atingir milhões de visualizações em poucas horas, o vídeo coloca o podutor rural em um papel caricato e de vida mansa.

Nem todo(a) produtor(a) rural quer trocar o capim pela areia, como cita a música. Mas, quando ela faz sucesso nas plataformas de áudio e vídeo, a imagem do filhinho herdeiro ostensivo gruda no imaginário das pessoas que desconhecem o agro.

Há quem concorde, há quem discorde. Meu objetivo aqui é mostrar que a figura do produtor rural está permeada, no audiovisual, com estereótipos. No entanto, quem planta, colhe e cria tem diversas culturas, rostos, sotaques e está espalhado em múltiplas localidades do país.

Sigo com outro exemplo recente da dramaturgia. Na terceira temporada da série "Arcanjo Renegado", o personagem principal vive de perto um conflito armado no Pará, em que um produtor rural quer invadir uma área de assentamento. Essa é uma realidade em diversas áreas da Amazônia, mas não é a única realidade. É complexo generalizar e retratar, em uma série de alcance internacional, que agricultor e grileiro são a mesma pessoa.

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O cinema, a música, a série parecem casos isolados, mas juntos contribuem para o zeitgeist — a construção do espírito do tempo em que vivemos, em que a percepção da sociedade sobre quem trabalha na agropecuária é limitada.

Meu objetivo nesta coluna é mostrar a você, leigo sobre o agro, que agricultores e pecuaristas não se resumem a vilões ou herdeiros com a vida ganha. E mostrar a você, agente do agronegócio, que, enquanto, não houver investimento em cultura e diálogo pacificador, os estereótipos reducionistas permanecerão. Contribuir com uma nova visão sobre trabalhadores(as) e empresários(as) rurais não significa manipular materiais escolares e deturpar as leis de incentivo à cultura.

As crenças sobre os latifundiários serem desmatadores são oriundas da história do país. É possível virar essa página e escrever sobre os tantos personagens reais. Isso requer investimento em arte, cultura e comunicações, de preferência com boas histórias possíveis de serem comprovadas.

Escritores, roteiristas, diretores de séries e filmes e a indústria da música também precisam expandir os horizontes e sair de uma visão generalista e preconceituosa sobre quem habita o campo.

O Censo Demográfico 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que 25,6 milhões de pessoas moram na zona rural — há muito mais do que agroboys e jecas. Vamos nos dar a oportunidade de conhecer mais e retratar melhor a pluralidade do povo brasileiro.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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