Brasil é pioneiro em genética e cultivo de Cannabis -- falta o agro reagir
Pessoas diagnosticadas com epilepsia, Alzheimer, depressão e outros quadros recorrem à Cannabis para tratamentos. A discussão do consumo circula entre os vieses judiciário e medicinal, mas para tudo isso avançar é preciso olhar para o início, à terra. O plantar, cultivar, colher e processar uma planta. Disso, o Brasil entende muito bem.
Na Expocannabis, feira dedicada ao setor realizada no último fim de semana em São Paulo, impressionava ver a quantidade de pessoas ávidas por autocultivo, aprendendo sobre biofertilizantes, sementes, modificação genética, pousio e tantas outras conversas que produtores rurais e agrônomos têm diariamente.
Empresários dos Estados Unidos, Uruguai, Canadá, Holanda e Espanha já perceberam isso, somado à fama agrícola que tem o Brasil. Por isso, companhias do Hemisfério Norte esperam que o país seja o maior produtor de cannabis do mundo em poucos anos.
Igual à sofisticação do café, do vinho ou do queijo, escolher a cannabis correta, com níveis determinados de CBD, THC ou outros canabinoides, já é uma realidade no Brasil. Com isso, muito dinheiro circula entre sementes, adubos, máquinas de colheita e pós-colheita e sistemas de irrigação.
As vendas de extrato de cannabis em farmácias brasileiras mais que triplicaram no primeiro semestre de 2024 em comparação ao mesmo período de 2023, segundo a BRCann (Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides). Já a consultoria Kaya aponta que o mercado da planta poderia movimentar R$ 26 bilhões por ano no país.
A planta é de ciclo curto (como a soja), cultivada na terra em pleno sol ou estufa, com centenas de genéticas ao redor do mundo e alta capacidade de absorção de dióxido de carbono. Pode ser inserida na rotação de commodities em larga escala e gerar renda à agricultura familiar. Possui uso medicinal e têxtil, além da substituição ao plástico e sementes ricas em proteína, corroborando com a agenda da segurança alimentar.
O que o agro está esperando para se inserir nesta realidade, inclusive falando com o consumidor da cidade, tido como a maior barreira de comunicação do próprio setor?
Eu fiz essa pergunta na ExpoCannabis para produtores rurais, engenheiros florestais e universidade. As percepções são as mesas: "O Brasil está perdendo o tempo", "Estamos muito atrasados", "Os empresários não querem levar o assunto ao board e assumir riscos".
Enquanto o setor produtivo demora para quebrar preconceitos, judicialmente, algumas mudanças têm ocorrido no Brasil, a exemplo da descriminalização do porte de até 40 gramas da planta para consumo próprio. Também a recente autorização do STJ (Superior Tribunal de Justiça) para importação de sementes e cultivo de cânhamo industrial para fins medicinais.
No entanto, de nada adianta a permissão de plantio, se o Ministério da Agricultura e a Anvisa não tiverem regulamentações e registros para sementes e genéticas. As fontes dizem que faltam os órgãos "apertarem um botão" para destravar uma indústria que se desenvolve em paralelo aos regramentos.
Primeiro, agrônomos. Depois, Anvisa
A decisão do STJ sobre importação de sementes se limita às variedades da planta com baixo teor de THC (tetrahidrocanabinol), substância responsável pelos efeitos psicoativos. O teor de THC deve ser inferior a 0,3% das propriedades da planta. Quais são as cultivares que chegam a este resultado? Quais os protocolos comprobatórios do Mapa e Anvisa? Ainda não há.
Falta critérios estabelecidos pelo Mapa para registrar cultivares de cannabis no Brasil. Quem explica isso é Sérgio Rocha, engenheiro agrônomo, especialista em Agroecologia e doutorando na área de Melhoramento de Plantas, Recursos Genéticos e Biotecnologia na Universidade Federal de Lavras.
Ele diz que as características do melhoramento genético são homogeneidade, estabilidade e repetibilidade. Para que haja comprovação disso, são necessários parâmetros estabelecidos pelo Mapa, e somente depois a Anvisa poderá chancelar a sanidade de determinada semente.
"O THC é muito suscetível ao sol, então é difícil a planta ficar abaixo dos 0,3% exigidos pelo STJ. Fomos cruzando as variedades e, pela primeira vez, conseguimos chegar a uma genética que ficasse com menos de 0,2%", explica. Isso significa que, após anos de pesquisa de cruzamento genético, Rocha chegou ao resultado do que pode ser considerada a primeira variedade brasileira de Cannabis.
O feito científico pode mudar o rumo do uso da planta para a medicina, e contribuir para a fitoterapia ser mais acessível no SUS (Sistema Único de Saúde). Afinal, replicar uma genética brasileira é muito mais barato do que importar sementes estrangeiras.
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Há outros disruptores no Brasil. Edmar Martinez é produtor rural no interior de São Paulo e, entre hortaliças e vegetais, também se dedica ao plantio da cannabis. Sem nunca ter pensado na possibilidade, foi consultado sobre plantar legalmente para uma associação permitida a produzir óleo de canabidiol.
Ele cultiva meia tonelada de flor a cada quatro meses em 4.000 metros quadrados, cuja área é certificada pela Ecocert, reconhecida certificadora internacional de produtos orgânicos. "O Brasil poderia estar estampando a primeira Cannabis com selo orgânico do mundo! Mas, faltam os critérios do Mapa para o registro das cultivares", diz Martinez.
Também a empresa Buds Inc., junto à UFV e a Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), inova ao desenvolver métodos de aproveitamento de resíduo, a exemplo de um biochar de cannabis e o potencial das fibras de cânhamo em alternativa ao pinus. Gustavo Baesso, engenheiro florestal da Buds Inc., conta que a empresa se encaminha para ser o primeiro viveiro comercial de mudas de cannabis do Brasil.
As inovações partem majoritariamente de consumidores e iniciativa privada. "É como o carro na frente dos bois. Estamos na frente do governo, na frente da Embrapa. Paciente, usuário, cultivador estão escolhendo nível de terpeno, um trabalho sofisticado de cultivo e extração, muito à frente da discussão se vamos plantar ou não", afirma Luiz Borsato, fundador da Netseeds, companhia representante de marcas especializadas em genética de cannabis dos Estados Unidos, Espanha e Holanda.
O empresário, que já atua com o ramo do agronegócio há mais de 20 anos, fala da gravidade que é a falta de rigor no processo da chegada das sementes de Cannabis no Brasil. "Não existe via regulatória, auditável, ninguém checa a procedência das sementes infelizmente. Esta é uma vulnerabilidade que o sistema proibitivo impõe", diz.
Segundo o Mapa, em um hectare, é possível cultivar cerca de 560 mil plantas e produzir até quatro toneladas de fibras longas, 1,6 tonelada de sementes e 800 quilos de flores medicinais. O que será feito a partir do conhecimento destes dados? É a resposta que a indústria canábica quer saber, do Congresso, do Judiciário e da Agricultura.
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