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Cuidado com o dinheiro fácil

Carlos Eduardo Furlanetti

06/11/2020 04h00

Em uma linda ilha de clima tropical, havia uma sociedade cuja renda era bastante concentrada. Um por cento dos mais ricos detinham quase 30% de toda a renda nacional. Os mais ricos, incluindo uma parcela de sua classe média, eram capazes de gastar menos do que recebiam. Assim podiam realizar uma série de investimentos.

Mesmo em paraísos naturais, abençoados por Deus, há coisas que não funcionam tão bem. O governo da ilha havia acumulado enormes dívidas, pois gastara, por anos seguidos, mais do que arrecadara com impostos, taxas e outras receitas extraordinárias. Para resolver o problema, durante muito tempo, resolveu financiar a sua dívida, emitindo títulos cujos juros reais (acima da inflação) eram um dos maiores do planeta Terra.

E assim vivia relativamente feliz uma parcela da sociedade, mesmo sabendo que cerca de 35% de todas as receitas do governo eram gastas para pagar os detentores dos títulos da dívida pública. Para colocarmos as coisas de forma simples: era colocar o dinheiro em um fundo de investimento em títulos da dívida do governo e, como num passe de mágica, decorrido um período de tempo, obter retornos extraordinários, sem assumir riscos relevantes.

Mas como nos ensinou o professor Milton Friedman: "Não existe almoço grátis". Com o advento de uma crise financeira global, originada em uma das principais economias mundiais, que provocou uma escassez de crédito, os governos de vários países tiveram que socorrer instituições financeiras e fornecer liquidez (leia-se: dinheiro a baixo custo) para estimular as empresas e mercados. Não foi diferente o que aconteceu na maravilhosa ilha da nossa história.

Com os títulos da dívida da ilha oferecendo um retorno cada vez menor para o investidor, esse se viu obrigado a buscar outras alternativas de investimento para aumentar sua renda e patrimônio, assumindo para tal um maior (e, muitas vezes, desconhecido) risco. E assim boa parte do patrimônio antes aplicado em títulos do governo foi parar, rapidamente, em um negócio chamado Bolsa de Valores, onde indivíduos podem ser sócios de uma empresa, comprando títulos que dão direito, entre outras coisas, a uma fração do patrimônio da empresa e aos seus resultados, proporcionalmente.

Essa menor fração do patrimônio, que recebe o nome de ação nas empresas de capital aberto, pode gerar dois tipos de ganhos aos seus proprietários: ganho de capital: a) quando o preço da ação passa a valer um valor maior do que o valor pelo qual você pagou, e b) o recebimento de proventos (em resumo, uma parcela dos resultados da empresa que não é reinvestida na própria companhia —por exemplo, os dividendos). Por outro lado, uma ação pode, infelizmente, se desvalorizar em função de fatores sistêmicos (por exemplo, uma crise global, uma pandemia) e, ainda, por fatores intrínsecos ao próprio negócio e à sua gestão (por exemplo, uma empresa cujos gestores tomam decisões ruins podem produzir perdas aos seus acionistas).

Mas o que muita gente se esquece, quando analisa o potencial de valorização de uma ação, no curto prazo, é o efeito liquidez. Explico. Se um supermercado, que recebe, em média, cem pessoas por dia para comprar seus itens, passar a receber 300 pessoas, mantendo o mesmo nível de produtos nas prateleiras, é razoável pensar que os preços dos seus itens possam subir em função do aumento da procura.

Incrivelmente, nessas proporções do exemplo do supermercado, os investidores da nossa ilha migraram de investimentos mais seguros para mais arriscados. Portanto, uma parte da valorização ocorrida na Bolsa de Valores da ilha pode ser explicada por esse movimento. Efeito liquidez. No entanto, voltando ao mundo das coisas reais, o que faz uma ação se valorizar de maneira sustentável, no longo prazo, é a sua capacidade de gerar fluxos de caixa líquidos positivos, ou seja, ser capaz de entregar produtos e serviços ao mercado, gerando resultados que remunerem minimamente o que é requerido por proprietários, dado o nível de risco que assumem.

Por isso, caro leitor, tenha em mente a frase de Friedman: "Não existe almoço grátis". Ganhar dinheiro na Bolsa de Valores da nossa ilha demanda disciplina, habilidades comportamentais e uma série de outras competências técnicas. Mesmo que você tenha se dado bem em um curto período de tempo, não deixe que a sua autoconfiança lhe deixe cego: é preciso humildade para aprender sobre o funcionamento dos mercados financeiros, especialmente sobre como se proteger e administrar os riscos. Não é um bicho de sete cabeças, não fique tão impressionado com os jargões dos especialistas, mas saiba que é preciso estudar. Fica a dica.

Este material não é um relatório de análise, recomendação de investimento ou oferta de valor mobiliário. Este conteúdo é de responsabilidade do corpo jornalístico do UOL Economia, que possui liberdade editorial. Quaisquer opiniões de especialistas credenciados eventualmente utilizadas como amparo à matéria refletem exclusivamente as opiniões pessoais desses especialistas e foram elaboradas de forma independente do Universo Online S.A.. Este material tem objetivo informativo e não tem a finalidade de assegurar a existência de garantia de resultados futuros ou a isenção de riscos. Os produtos de investimentos mencionados podem não ser adequados para todos os perfis de investidores, sendo importante o preenchimento do questionário de suitability para identificação de produtos adequados ao seu perfil, bem como a consulta de especialistas de confiança antes de qualquer investimento. Rentabilidade passada não representa garantia de rentabilidade futura e não está isenta de tributação. A rentabilidade de produtos financeiros pode apresentar variações e seu preço pode aumentar ou diminuir, a depender de condições de mercado, podendo resultar em perdas. O Universo Online S.A. se exime de toda e qualquer responsabilidade por eventuais prejuízos que venham a decorrer da utilização deste material.