Gás natural em caminhão economizaria R$ 1 em vez de R$ 0,46; o que impede?
O Brasil praticamente parou no fim de maio por causa de R$ 0,46. Essa foi a redução no preço do litro do diesel prometida pelo governo aos caminhoneiros, após a greve que prejudicou a distribuição de alimentos, combustíveis e mercadorias em todo o país.
No fim das contas, o desconto não chegou integralmente à bomba, assim como outras reivindicações dos caminhoneiros também não foram plenamente atendidas. E pior: o governo se comprometeu a manter a redução no preço do diesel somente até o fim deste ano. Não se sabe como ficará a situação a partir de 2019.
Todo o imbróglio poderia ser evitado se os caminhoneiros pudessem contar com um combustível alternativo ao diesel, mais barato e menos poluente: o gás natural.
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Segundo especialistas, a economia na troca do diesel pelo gás seria hoje da ordem de R$ 1 por litro, ou seja, mais do que o dobro dos R$ 0,46, sem necessidade de o governo cortar impostos ou fazer outros malabarismos fiscais para conseguir a redução prometida aos caminhoneiros.
Mas, se o gás natural é muito mais barato e menos nocivo ao meio ambiente do que o diesel, por que quase não há caminhões e ônibus rodando pelo país com esse combustível?
A rede limitada de postos de abastecimento de GNV (gás natural veicular) e a inexistência de veículos a gás de fábrica são duas barreiras importantes. Uma alternativa é transformar os caminhões e ônibus existentes para rodar com gás natural. O problema, nesse caso, é o investimento no kit de conversão, que chega a 25% do valor do veículo.
O UOL descobriu que algumas montadoras estudam produzir veículos pesados a gás no Brasil. Elas até já têm modelos rodando pelo país para demonstração. Veja as opiniões de diversos especialistas sobre os prós e contras do gás natural em veículos pesados.
Tecnologia de gás natural não é novidade
Enquanto a tecnologia para veículos elétricos ainda está em evolução, o uso do gás natural para transporte está difundido no mundo há vários anos, inclusive em países vizinhos ao Brasil, como Argentina, Bolívia e Peru.
O uso do gás natural em motores não é novidade. É uma tecnologia mais barata do que o veículo elétrico e já existe há mais de 30 anos
Edmilson Moutinho, coordenador do Programa de Economia e Políticas Energéticas do RCGI (Centro de Pesquisa para Inovação em Gás, na sigla em inglês)
Ao longo desse período, a tecnologia foi bastante aperfeiçoada. “Falta de torque em motor movido a gás natural é um problema da década de 90. Isso já foi superado. Hoje, o motor a gás tem a mesma força de um similar a diesel”, disse Celso Mendonça, gerente de desenvolvimento de negócios da Scania no Brasil.
Gás é mais econômico e menos poluente do que o diesel
A principal vantagem do gás natural em relação ao diesel está no bolso. O preço médio do metro cúbico de gás no Brasil está hoje em R$ 2,71, contra R$ 3,38 do litro do diesel, uma diferença de R$ 0,67 ou 20%, segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis).
Antes da redução de R$ 0,46 no preço do diesel, implementada pelo governo em junho, a diferença era de R$ 1,13 ou 30%. No estado de São Paulo, mesmo após o corte no valor do diesel, o gás natural (R$ 2,26) ainda custa R$ 1 (30%) a menos do que o diesel (R$ 3,26).
“A grosso modo, você pode admitir que um caminhão que roda dois quilômetros com um litro de diesel irá percorrer os mesmos dois quilômetros com um metro cúbico de gás. A conta não é tão simples assim, mas é uma boa aproximação”, afirmou o engenheiro Luís Henrique Verginelli, responsável pela loja da Comgás que realiza conversão de automóveis para gás natural em São Paulo.
“Tomando essa conta como base, você pode estimar que a economia do gás natural em relação ao diesel é da ordem de 30%, ou de R$ 1 por litro, considerando os preços atuais dos combustíveis”, disse Verginelli.
A economia não é apenas para o bolso do caminhoneiro. A saúde da população e o meio ambiente também saem ganhando com o uso do gás natural, cuja queima produz um volume bem menor de poluentes e gases causadores do efeito-estufa.
De acordo com a Comgás, o GNV proporciona uma redução de até 20% nas emissões de gás carbônico (CO2) e de até 90% na produção de partículas (fuligem) na comparação com o diesel.
Produção de caminhão a gás no Brasil depende de demanda
Um dos motivos que explicam o fato de ônibus e caminhões a gás natural ainda serem raros no Brasil é a ausência de linhas de produção de motores a gás ou bicombustível (diesel/gás) no país.
Algumas fabricantes já chegaram a montar veículos pesados utilizando chassis e carrocerias nacionais, mas com motores a gás importados. Quase todas as unidades foram destinadas à exportação para atender encomendas específicas em países vizinhos ao Brasil.
No entanto, a crise provocada pela greve dos caminhoneiros está levando algumas montadoras a reavaliar o potencial do mercado brasileiro para produção em larga escala de ônibus e caminhões movidos a gás natural.
As montadoras também estão de olho no processo de renovação da frota de ônibus da cidade de São Paulo. A licitação é considerada a maior do mundo no segmento de transporte urbano, com a substituição de 28 mil ônibus nos próximos 20 anos. A nova frota terá que atender rígidas exigências ambientais, com a redução na emissão de gases que provocam o efeito-estufa.
Iniciar a produção de veículos pesados a gás no Brasil seria algo relativamente simples. Os veículos a gás poderiam utilizar a mesma estrutura (chassi e carroceria) dos modelos a diesel nacionais.
Segundo os executivos das montadoras, o que impede o início da produção local, por enquanto, é a falta de demanda.
Temos notado interesse por veículos a gás no mercado brasileiro. Mas ainda não enxergamos demanda suficiente para justificar o início de uma produção local no curto prazo
Alexandre Capelli, gerente de engenharia da Iveco
Capelli avalia que o governo poderia estimular a demanda por meio de algum programa para substituição do diesel por fontes de energia menos poluentes. “É um tema delicado, que envolve política energética.”
Importar caminhões a gás também está fora de questão. “Hoje não compensa por causa das taxas de importação. Seria necessário algum tipo de incentivo do governo”, disse o gerente da Iveco.
Scania e Iveco estão apresentando veículos a interessados
O UOL apurou que algumas montadoras já possuem ônibus e caminhões a gás circulando pelo Brasil para demonstração a operadores de frotas e para realização de testes.
Queremos provar que o veículo a gás é viável tanto tecnicamente como economicamente
Celso Mendonça, gerente de desenvolvimento de negócios da Scania
Desde 2014, a Scania vem apresentando um modelo de ônibus urbano que utiliza um motor importado capaz de rodar com GNV, o gás natural veicular, e com biometano.
Enquanto o GNV é proveniente do petróleo, uma fonte de energia não renovável, o biometano é considerado uma fonte renovável. Ele é produzido a partir de restos de matéria orgânica em aterros sanitários, estações de tratamento de esgoto, usinas de cana-de-açúcar, entre outros locais.
“Também estamos trazendo da Suécia um cavalo mecânico [parte do caminhão onde fica a cabine e o motor] movido a gás e biometano que irá puxar uma carreta Vanderleia [modelo que possui três eixos espaçados] com até 53 toneladas de carga”, afirmou Mendonça.
O caminhão será importado pela Scania ainda neste semestre e terá autonomia para rodar 700 quilômetros a cada abastecimento de gás. O veículo deverá percorrer cerca de 25 mil quilômetros por mês, entre testes e demonstrações a potenciais clientes.
A Iveco já possui caminhões a gás rodando pelo país, mas não forneceu detalhes sobre as experiências. “Fechamos acordo para um projeto-piloto com alguns parceiros estratégicos”, declarou Capelli.
Conversão de motor é única opção disponível no país
Como não há caminhões e ônibus novos movidos a gás natural à venda no Brasil, a saída para caminhoneiros e frotistas interessados em usar o combustível hoje é realizar a conversão dos veículos a diesel disponíveis no mercado.
Há dois tipos distintos de conversão de motores a diesel para gás. A mais comum é a ottonização, ou seja, a transformação do motor de ciclo diesel para ciclo otto, mesmo sistema dos motores a gasolina e etanol.
Após a ottonização, o motor passa a funcionar 100% com gás e deixa de usar o diesel. Não é possível escolher entre um combustível ou outro, como acontece nos automóveis convertidos para uso de gás.
O outro tipo é a conversão bicombustível. Nessa transformação, o motor a diesel sofre menos adaptações do que na ottonização e funciona simultaneamente com os dois combustíveis, em uma mistura que pode chegar 50% de gás e 50% de diesel. Não é possível usar apenas gás natural.
A escolha entre a ottonização e a conversão bicombustível depende basicamente da disponibilidade de gás. Um caminhão ou ônibus que sofre ottonização aproveitará melhor os benefícios econômicos e ambientais do gás, mas ficará completamente dependente desse combustível.
Conversão pode custar até 25% do preço do caminhão
Como os kits de conversão são importados, o custo para realizar o serviço é elevado, variando entre 10% e 25% do preço do veículo, afirmou Verginelli, que também é dono da consultoria Gasland, especializada na conversão de motores a diesel.
“O investimento inicial é elevado, mas a economia gerada pela diferença de preço entre o diesel e o gás permite pagar a conversão em até um ano se o veículo rodar bastante”, declarou o especialista.
Segundo ele, o kit mais barato para motores a diesel custa em torno de US$ 10 mil (R$ 37 mil). Apenas como base de comparação, um kit para converter um automóvel a gasolina ou flex para GNV custa cerca de R$ 4.000.
Verginelli explicou que o custo de conversão de um caminhão depende de algumas variáveis, como o tamanho do motor, a capacidade de carga e a autonomia (número de quilômetros que o veículo pode rodar sem abastecer) desejada.
“A conversão do motor em si não é tão cara. O problema são os cilindros para armazenar o gás”, disse o engenheiro. Quanto mais cilindros o veículo tiver, mais quilômetros poderá rodar usando gás. Por outro lado, devido ao peso e ao espaço ocupado pelos cilindros, sua capacidade de carga será menor.
“Posso usar cilindros de aço, que são mais baratos. Porém, eles são mais pesados, o que reduz a capacidade de carga do caminhão. Ou posso usar cilindros de fibra de carbono, bem mais leves, mas que custam o quádruplo do preço de um feito de aço.”
Conforme Verginelli, é preciso buscar um equilíbrio entre a autonomia e capacidade de carga para não encarecer excessivamente a conversão. “Tudo depende da forma de uso do veículo. Se vai rodar mais em rodovias e se essas estradas têm restrição de peso por balanças. Ou se o uso será urbano, com o veículo sempre circulando próximo a um local de abastecimento.”
Quantidade de postos de GNV no país ainda é pequena
A rede limitada de postos de abastecimento de GNV no país é outro fato que desestimula caminhoneiros a adotar o combustível.
O Brasil tem cerca de 40 mil postos. Menos de 2.000 dispõem de GNV. Infelizmente ainda não há uma cobertura de abastecimento em larga escala
Alexandre Capelli, gerente de engenharia da Iveco
Dos 1.800 postos que possuem GNV, metade está localizada nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. A maior parte está em áreas urbanas, fora das rotas dos caminhões rodoviários. Sete estados (Acre, Amapá, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) não têm nenhum posto GNV.
“Falta estimular a demanda por gás natural para que a rede de gasodutos possa chegar a novos lugares e mais postos de GNV possam ser abertos. Não há como você abrir posto se não tiver gasoduto por perto”, disse Francisco Nigro, conselheiro da SAE Brasil (Sociedade de Engenheiros da Mobilidade).
Segundo Nigro, a estratégia para expandir a oferta de gás natural pelo país seria estimular seu uso pelas indústrias. “Você precisa ter um grande consumidor para viabilizar economicamente a construção de um gasoduto. Apenas a demanda residencial de uma cidade não é suficiente.”
Experiências ruins no passado geraram preconceito com gás
Algumas experiências de uso do gás natural para transporte público no Brasil nos anos fim dos anos 80 foram malsucedidas, o que causa preconceito até hoje entre os operadores de frotas de ônibus e caminhões.
“A CMTC [companhia municipal de transportes de São Paulo, atual SPTrans] converteu 200 ônibus para gás. A tecnologia não era das melhores naquela época, e houve uma série de falhas técnicas que criaram dificuldades para o operador”, afirmou o professor Edmilson Moutinho, da USP (Universidade de São Paulo).
Um dos problemas enfrentados na época era a qualidade do gás natural, que muitas vezes chegava aos postos de abastecimento em estado “bruto”, sem passar por um processo de purificação, como ocorre hoje.
Francisco Nigro, conselheiro da SAE Brasil
O gás natural veicular possui essencialmente metano em sua composição. Porém, o gás que sai dos poços de petróleo apresenta outros componentes associados, como propano e butano, que prejudicam a combustão nos motores.
Tecnologia deve evoluir para uso de gás liquefeito
A tecnologia do gás natural continua em evolução. Estudos realizados nos Estados Unidos, Europa e também no Brasil indicam que os veículos pesados da próxima década poderão ser movidos a gás natural liquefeito (GNL).
O gás natural veicular (GNV) utilizado hoje nos automóveis e caminhões é conhecido também como gás natural comprimido (GNC). O combustível que chega pelos gasodutos sofre intensa pressurização no posto de abastecimento, equivalente a 200 vezes a pressão ambiente (200 atm), e é injetado nos cilindros dos veículos.
A alta pressão do GNC tem como finalidade reduzir o volume do combustível para facilitar seu transporte. Mesmo assim, os cilindros para armazenar o gás sob pressão são pesados e ocupam um espaço significativo nos veículos.
Já o GNL ocupa um volume bem menor do que o GNC. Para isso, o gás natural é resfriado até -160°C, transformando-se em um combustível líquido. Os caminhões movidos a GNL utilizam tanques de aço inox com um sistema especial de resfriamento para armazenar o combustível.
“Apesar de operar a uma temperatura muito baixa, o GNL é mais fácil de abastecer e transportar porque está na forma líquida”, afirmou Thiago Brito, pesquisador do RCGI, um centro de pesquisa de inovação em gás natural mantido pela Shell e pela Fapesp e com sede na Escola Politécnica da USP, em São Paulo.
Além de necessitar de tanques menores, veículos movidos a GNL possuem autonomia maior do que similares a GNC. “O GNL apresenta poder energético superior ao GNC. Com o mesmo volume de GNL, um caminhão roda quase o dobro de quilometragem do que conseguiria com GNC”, disse Pedro Gerber, também pesquisador do RCGI.
Gerber e Brito fazem parte de um grupo de pesquisa sobre “corredores azuis”, que avalia a viabilidade econômica de distribuir GNL em todo o estado de São Paulo. A ideia é criar rotas rodoviárias que permitam a circulação e abastecimento dos caminhões utilizando o GNL.
A Volvo já realizou testes com um caminhão movido GNL no Brasil, em parceria com a White Martins, que dispõe de uma unidade de liquefação de gás em parceria com a Petrobras na cidade de Paulínia (117 km a noroeste de São Paulo).
Segundo a montadora sueca, a experiência realizada na época “não se mostrou viável para uma operação de transporte regular. O custo por quilômetro rodado, considerando a adaptação necessária e a proporção de utilização de GNL e diesel, não foi competitivo.”
A Volvo lançou recentemente na Europa uma versão mais moderna do seu caminhão a GNL para aumentar a viabilidade do combustível. A empresa informou que o novo modelo vem apresentando bons resultados.
“No entanto, por estar atrelado a uma plataforma de motorização que ainda não temos aqui (Euro 6), não há planos para lançamento no Brasil”, disse a Volvo. Além disso, o Brasil ainda não dispõe de uma rede de distribuição de GNL para permitir o uso de veículos com esse combustível por aqui.
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