Reforma muda Justiça gratuita para evitar abuso, mas limita acesso de pobre
A medida provisória que a Câmara transformou em nova reforma trabalhista poderá dificultar o acesso à Justiça gratuita, benefício para quem não pode pagar as despesas de um processo judicial. Se o texto for aprovado pelo Senado e pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), haverá cobrança inclusive em juizados especiais federais (conhecidos como de pequenas causas). Hoje esses juizados atendem de graça ações de menor valor em primeira instância.
Embora as mudanças façam parte da nova reforma trabalhista de interesse do governo, elas afetariam diferentes processos, não só ligados ao trabalho: direito de família, benefícios previdenciários e pedidos de indenização, entre outros.
Especialistas em direitos humanos e a DPU (Defensoria Pública da União) afirmam que o projeto impedirá que muitas pessoas reclamem seus direitos na Justiça. Juízes federais criticam a mudança da regra para os juizados especiais, mas dizem que o texto avança ao definir normas precisas para o benefício, cortando abusos de quem consegue gratuidade, mesmo podendo pagar.
Como funciona o benefício hoje
A Justiça gratuita para quem não consegue pagar as despesas do processo é um direito previsto de forma genérica na Constituição. Os detalhes são descritos em leis como o Código de Processo Civil e as dos juizados especiais.
A regra geral hoje define que a pessoa pode pedir o benefício em qualquer fase do processo, declarando que não tem condição de pagar.
Só há necessidade de comprovar a situação econômica se o juiz ou qualquer parte do processo contestar a declaração —o que é algo comum, segundo os especialistas ouvidos pelo UOL.
Mesmo quem tem advogado particular no processo pode pedir Justiça gratuita. Com o benefício, a pessoa não precisa pagar despesas como:
- taxas e custas judiciais
- honorários de sucumbência (pagos ao advogado da parte que ganha o processo)
- honorários de perito
- exame de DNA (comum em ações de reconhecimento de paternidade)
Projeto determina critério de renda familiar
O texto aprovado na Câmara determina que só terá direito à Justiça gratuita quem estiver em cadastro do governo federal para programas sociais (o que hoje seria o CadÚnico). Além disso, o beneficiário teria que cumprir pelo menos um destes critérios de renda:
- renda familiar mensal de até meio salário mínimo (R$ 550) por pessoa
- renda familiar total de até três salários mínimos (R$ 3.300)
Essa regra valeria inclusive para os juizados especiais federais, os quais analisam processos que envolvam dinheiro da União (como ações previdenciárias contra o INSS) quando o valor discutido não passa de 60 salários mínimos (R$ 66 mil).
Hoje não há custas para ações de primeira instância nos juizados especiais federais. Só existe cobrança em caso de recurso.
Os juizados especiais estaduais têm um limite de valor mais baixo, de 40 salários mínimos (R$ 44 mil), e também são gratuitos para processos em primeira instância. Eles não analisam causas que envolvam dinheiro federal —são muito acionados em ações de direito do consumidor e pedidos de indenização. O texto da Câmara não muda essa regra.
Em processos trabalhistas, além dos critérios de renda familiar, teria direito à Justiça gratuita quem recebia no emprego mais recente salário de até R$ 2.573 (equivalente a 40% do atual teto para benefícios do INSS).
Especialistas dizem que haverá limitação do acesso à Justiça
Daisy Ribeiro, advogada da organização de direitos humanos Terra de Direitos, diz que o texto da Câmara vai dificultar o acesso à Justiça. Ela é contra a criação de critérios objetivos de renda, porque eles podem excluir pessoas que ganham acima do teto e mesmo assim não têm condição de arcar com despesas processuais.
"A renda é circunstancial. A pessoa pode ter uma renda que parece razoável, mas a maior parte dela estar comprometida com um tratamento de saúde, por exemplo", diz a advogada. "Na prática, [o critério objetivo] vai impedir essa pessoa de entrar com a ação."
Segundo Ribeiro, o uso do CadÚnico na seleção dos beneficiários é inadequado. Ela afirma que muitas pessoas em situação de vulnerabilidade não estão cadastradas, o que seria mais um obstáculo para que elas busquem seus direitos.
Em nota técnica, defensores públicos federais manifestaram as mesmas preocupações. "A proposta apresentada não considera múltiplos fatores que podem influenciar na situação econômica do indivíduo, a exemplo de gastos com saúde, educação, alimentação e outras despesas essenciais".
A DPU também considera que o uso do CadÚnico é uma "burocracia desnecessária" que excluirá pessoas indevidamente.
Juízes federais criticam a mudança nos juizados, mas veem avanços
Segundo Eduardo André Brandão, presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), a categoria é contra a cobrança de custas nos juizados especiais. Mas ele acredita que é importante estabelecer um critério objetivo de renda para deixar claro quem tem direito à Justiça gratuita.
Brandão defende, porém, que o limite de renda deveria ser mais alto, de três salários mínimos (R$ 3.300) por pessoa, não por família.
Segundo Brandão, o juiz poderia desconsiderar o critério objetivo e conceder o benefício da Justiça gratuita em casos excepcionais, quando a pessoa comprovar que não pode pagar as despesas mesmo recebendo acima do limite de renda.
Quem paga a conta?
Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a Justiça gratuita foi concedida em 31% dos processos arquivados em 2019. Mas considerando casos em que não há custas (juizados especiais, processos criminais e algumas execuções fiscais), o CNJ estima que pelo menos 75% das ações no país avancem sem que nenhuma parte pague as despesas.
Em relação ao número de processos, a Justiça Militar Estadual é a que mais concedeu o benefício (80%). Na Justiça do Trabalho, o índice foi de 56%, na Justiça Federal, 34% e na Justiça Estadual, 27%. Tribunais Superiores tiveram o menor índice de concessão do benefício: 13%.
Quanto maior o número de beneficiários da Justiça gratuita, menor a arrecadação direta dos tribunais. Na prática, isso significa mais dinheiro público para pagar as despesas processuais de quem consegue o benefício.
A arrecadação com custas e taxas judiciais em 2019 foi de R$ 13,1 bilhões. Esse valor cobriu 13% das despesas totais do Poder Judiciário (R$ 100,2 bilhões).
Em 2019, o custo pelo serviço de Justiça foi de R$ 479,16 por habitante, R$ 10,70 a mais, por pessoa, do que em 2018.
No caso da Justiça gratuita em processos contra o INSS, o Orçamento dos tribunais para pagar peritos chegou ao limite em 2019, e foi criada uma lei que obriga o governo federal a complementar o que falta. A limitação do benefício representaria, neste caso, um alívio direto nas contas do Poder Executivo.
O UOL questionou o Ministério da Economia sobre impactos da Justiça gratuita nas contas do governo, mas não obteve resposta.
Defensor afirma que não houve debate adequado
Murillo Martins, secretário de acesso à Justiça da DPU, diz que a Câmara aprovou as medidas sem o debate necessário. "Qualquer limitação à Justiça gratuita tem de ser bastante discutida, ainda mais numa situação de pandemia."
O defensor considera que os artigos sobre Justiça gratuita inseridos na medida provisória são "jabutis", porque não têm relação com o texto original. Ele afirma que o Supremo Tribunal Federal já declarou que esse tipo de manobra legislativa é inconstitucional.
Quando publicada pelo governo federal, a MP 1.045 apenas recriava o BEm —benefício emergencial para empregados que tiveram jornada e salário reduzidos durante a pandemia. O relator da MP na Câmara, deputado Christino Áureo (PP-RJ), inseriu diversos artigos e transformou o texto numa reforma trabalhista.
O relatório incluiu programas de emprego defendidos pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Onyx Lorenzoni (Emprego e Previdência). O texto foi aprovado com apoio da base governista na Câmara.
O UOL procurou o relator para falar sobre as mudanças na Justiça gratuita, mas ele não se manifestou.
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