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Mulher receberá R$ 1 milhão após 29 anos em situação análoga à escravidão

Mulher só conseguiu sair da situação em que vivia no ano de 2016, quando se desentendeu com a família - Reprodução/Flickr
Mulher só conseguiu sair da situação em que vivia no ano de 2016, quando se desentendeu com a família Imagem: Reprodução/Flickr

Do UOL, em São Paulo

11/07/2022 14h41Atualizada em 11/07/2022 14h45

Uma mulher de 42 anos terá direito a ser indenizada em até R$ 1 milhão por ter vivido quase 29 anos em situação análoga à escravidão, em São Paulo. Ela teve de trabalhar desde os sete anos de idade, sem ter tido a oportunidade de estudar e viveu em condições insalubres por boa parte da vida. A 6ª turma do TST (Tribunal Superior do Trabalho) decidiu, por unanimidade, manter a condenação de uma ex-professora e suas duas filhas, e elas terão de arcar com indenização.

No processo, a trabalhadora, supostamente colocada em posto de empregada doméstica, alegou que foi levada de Curitiba para morar na casa da patroa, em São Paulo, sob a promessa de ser integrada à família, dando a ela a oportunidade de um futuro promissor e um lar. A mulher foi levada em 1987 e ficou lá até 2016.

Ela foi privada de brincar e de estudar e obrigada a fazer faxina, lavar roupas, preparar as refeições, cuidar dos animais de estimação, ser babá das filhas e, mais tarde, cuidadora do casal, trocando fralda geriátrica, roupas de cama e ministrando medicação.

Dos sete aos 11 anos, ela trabalhou sem nenhum direito. Só aos 18 anos teve a carteira de trabalho assinada com um salário, mas os produtos usados por ela e as multas por não ir votar em período eleitoral eram descontados do pagamento. Ela só podia sair de casa para acompanhar a patroa ao supermercado ou consultas médicas. Para além disso, vivia trancada.

De acordo com os autos do processo, ela saiu após se desentender com uma pessoa da família. Em todo o período, ela nunca teve condições dignas, dormindo em um colchão no chão no banheiro dos fundos da residência e às vezes dormia no chão de um dormitório quando cuidava do esposo da patroa, que desenvolveu Alzheimer. Por seis anos, ela dormiu na área de serviço, sujeita a água de chuva e ventos.

O juízo da 88ª Vara do Trabalho de São Paulo havia condenado a professora e as filhas ao pagamento de R$ 150 mil por danos morais, entendendo que não houve adoção, mas sim admissão de menor em trabalho proibido. Mesmo assim, a sentença não considerou que a situação do trabalho foi análoga à escravidão.

No entanto, o TRT (Tribunal Regional do Trabalho) elevou a condenação para R$ 1 milhão a ser pago em 254 parcelas mensais, equivalente a 21 anos de pagamento, e com direito a correções monetárias.

O relator do caso, ministro Augusto César, considerou que a indenização de R$ 1 milhão "pode servir como paliativo para as privações e o sofrimento que marcarão a vida da trabalhadora, como sequelas que não se sabe se algum dia se resolverão".

O TRT julgou que a mulher esteve submetida a situações degradantes de trabalho, em condições análogas à escravidão, sem receber salário, privada de instrução formal e com mão de obra utilizada desde os sete anos em serviços notadamente inadequados para menores, além de ter sido privada de sua liberdade.

A patroa e as filhas apresentaram recurso ao TST, alegando que o valor da condenação era excessivo e não condizia com a realidade. No julgamento, a defesa declarou que a empregada era "parte da família" e tinha quarto próprio, carteira assinada e plano de saúde.

A defesa da mulher rebateu e relatou que as alegações não faziam sentido, pois ela não dormia em local apropriado e por muitos anos ficou em colchões no chão. Além disso, o advogado reiterou que ela havia sido privada de educação, enquanto as filhas do casal têm nível superior.

A ministra Kátia Arruda exemplificou o caso como um fator que deixa claro o ciclo de perpetuação da pobreza, reforçando que os vizinhos que conheceram a mulher falaram que ela era tratada como empregada doméstica. Segundo ela, as pessoas que começam a trabalhar cedo em casas de família permanecem nessa atividade quando adultas, porque não têm tempo de desenvolvimento e sofrem privações físicas e emocionais.