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Alexandre Pellaes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que chamar a empresa de 'família' pode não ser uma boa ideia

Duy Pham/Unsplash
Imagem: Duy Pham/Unsplash

Colunista do UOL

23/06/2022 04h00

Por trás da frase "Aqui nós somos uma família!" existem armadilhas que podem minar a transparência das relações, a proatividade para inovação e até a saúde mental das pessoas. Mas, olha só, isso não é uma estratégia organizacional maquiavélica. É consequência da estruturação e da formação das empresas no país.

De acordo com dados do Sebrae e do IBGE, as empresas familiares representam 90% dos negócios constituídos, são responsáveis por 65% do PIB e geram aproximadamente 75% dos empregos formais no Brasil. UAU!

Como não somos um país historicamente desenvolvido em termos de liderança e gestão, é comum escutarmos frases que comparam empresas a famílias, como reflexo da intenção de buscar um atalho para a construção de vínculo de um grupo social que atue com compromisso e interesses em comum, pautados por cuidado, empatia, respeito, e carinho uns com outros(as). Ou seja, é uma tentativa de transferir valores nobres da estrutura familiar para o arranjo organizacional.

No entanto, em um mundo com profundas mudanças nas relações sociais, com a transformação do significado do trabalho, a evolução do papel da liderança e a reinvenção das organizações, é preciso encarar o fato de que uma empresa não é uma família. E, principalmente, não é a sua família.

Cada indivíduo tem uma história única e uma percepção peculiar do que é a sua experiência em família. Há famílias em que a concentração de poder é absoluta e inquestionável; há outras em que o papel de provedor é masculino, enquanto a mulher deve se resignar aos cuidados com a casa, filhos e marido; existem ainda aquelas em que os pais são relapsos e os filhos precisam, precocemente, se tornar responsáveis por atividades para as quais não estão preparados; e tantos outros formatos e conexões possíveis...

Ou seja, a comparação entre empresa e família leva cada pessoa a uma compreensão diferente sobre o que estará em jogo na relação profissional, e pode desencadear efeitos indesejáveis no mundo do trabalho - como os que listo a seguir:

1. Falta de limites sobre O QUE pode ser solicitado e COMO pode ser solicitado

Imagine uma estrutura familiar com relacionamento pesado, em que as relações foram construídas com base em medo e punição. O legítimo "manda quem pode e obedece quem tem juízo". A associação desse formato de vínculo pode ser extremamente negativa para as pessoas, levando-as a se posicionarem de maneira submissa, abrindo caminho para casos de assédio moral, abuso de poder, excesso de trabalho e burnout.

2. Confusão entre respeito e omissão

A metáfora familiar sugere uma liderança querida e respeitada, que está sempre fazendo o seu melhor e a quem devemos ser completamente gratos(as). Por medo de causar mágoa ou parecerem mal-agradecidas, as pessoas deixam de apontar falhas nos processos e de indicar oportunidades de melhoria, porque na estrutura familiar não rola uma conversa de feedback com pai e mãe, né? Com o silêncio em nome da obediência, diga adeus à inovação e à diversidade de pensamentos...

3. O peso do vínculo emocional

"Se somos uma família, você tem que nos amar" - e, assim, é criada uma grande confusão no lugar que o trabalho formal ocupa na vida de um indivíduo.

Nem toda pessoa está disposta a compartilhar particularidades da sua intimidade, participar de ações de integração fora do trabalho, ou celebrar marcos e realizações com o grupo.

Nem todo mundo se sente confortável com uma interação mais próxima e pessoal. (Aliás, há poucas semanas, um homem ganhou uma indenização de cerca de 2 milhões de reais por ter recebido uma festa surpresa de aniversário, mesmo após ter explicado expressamente o seu desconforto e gatilho para ataques de ansiedade).

Muitas famílias invadem esse espaço individual, e levar essa imposição para o mundo profissional é ainda mais doído, porque existe a sugestão de que o "laço que nos une é maior do que um contrato e não tem fim...". Bom, aí quando a pessoa toma uma decisão particular sobre mudar de carreira ou recebe uma proposta para ganhar o dobro ou, ainda, se apaixona e quer morar em outro país etc. há um sentimento de traição, em vez de felicidade por sua conquista.

4. Lealdade exagerada

De acordo com o consultor organizacional Joshua A. Luna, estudos indicam que pessoas excessivamente leais à "empresa-família" são mais propensas a participar de atos antiéticos para manter seus empregos e também tendem a não apontar o desvio de conduta de outros(as) colaboradores(as).

Eu mesmo já trabalhei em uma organização em que as pessoas eram tão leais que muitas sabiam de práticas ilegais de um diretor, mas mantinham-se silentes porque o ato trazia ganhos financeiros à empresa. Quando o caso veio à tona, diante de um enorme risco institucional, foi surpreendente identificar que o vínculo com a organização se tornara superior ao senso ético.

5. Infantilização da equipe e necessidade de atenção

Em geral, em uma família, os irmãos e irmãs disputam a atenção dos pais e mães; fazem comparações descabidas sobre o que um(a) e outro(a) merecem; ignoram a relação de esforço e de disciplina positiva que gera reconhecimento diferenciado; sentem-se injustiçados; e colocam-se como agentes passivos nos compromissos compartilhados de cuidado da unidade familiar. Ou seja, tendem a agir apenas quando recebem ordens e pressão. (esse conceito é explicado em detalhe em um artigo anterior desta coluna: "Sem protagonismo você não chega a lugar nenhum".)

Dá para imaginar o nível de dependência e infantilização que vem junto com esses comportamentos no âmbito profissional, não é?

6. Sobrecarga para a liderança

Ao posicionar as pessoas como personagens com menos poder e baixo nível de autonomia, a liderança se sobrecarrega pelo excesso de decisões e pela responsabilidade de sucesso dos trabalhadores(as).

Em uma espécie de superproteção, a liderança acredita que a carreira e a performance das pessoas dependem profundamente das suas ações e acaba tendo dificuldade para delegar decisões e ajudar os colaboradores(as) no processo de autodesenvolvimento.

Liderança sobrecarregada e equipes infantilizadas formam uma combinação perigosa.

E agora, famí... digo, pessoal?

Isso tudo significa que uma empresa que se autodenomina uma família é um lugar ruim para se trabalhar? Não. Não significa. Há organizações sérias e que cuidam atenciosamente de seus times, que se enxergam como famílias, com a boa intenção de criar vínculos positivos. No entanto, é hora de amadurecer e reconhecer os efeitos colaterais dessa prática, e o risco que ela representa para o sucesso da organização e para a saúde e para a individualidade dos trabalhadores(as).

Para promover uma cultura saudável, as organizações devem alinhar expectativas de desempenho, explicitar o propósito da empresa, definir limites de acesso e responsabilidade, discutir fronteiras éticas, e reconhecer o caráter temporário e profissional da relação.

Ainda que uma empresa não seja uma família, podemos nos tornar uma comunidade adulta, madura, com valores compartilhados, ciente dos nossos compromissos e que tem um nível de consciência elevado sobre nossa corresponsabilidade na qualidade das relações, sempre com respeito, empatia, foco, disciplina, compromisso e, veja só, tem lugar até para amizade e amor - mas esse último é papo para um artigo futuro;^)

E aí? Você já tinha consciência sobre os efeitos da mistura do conceito de empresa com família?

Como é essa questão no seu emprego?

Deixe o seu comentário aqui ou me escreva no instagram @pellaes - quero saber qual é a sua percepção sobre esse tema.

Um grande abraço e muito bom trabalho.

Lugares Incríveis para Trabalhar

O Prêmio Lugares Incríveis Para Trabalhar é uma iniciativa do UOL e da FIA para reconhecer as empresas que têm as melhores práticas em gestão de pessoas. Os vencedores são definidos a partir dos resultados da pesquisa FIA Employee Experience (FEEx), que mede a qualidade do ambiente de trabalho, a solidez da cultura organizacional, o estilo de atuação da liderança e a satisfação com os serviços de RH. A pesquisa já está na fase de coleta de dados das empresas inscritas e as empresas vencedoras devem ser anunciadas em agosto.