Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
MEI: da inclusão social ao risco da precarização do trabalho
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Você já deve ter lido ou ouvido falar que o MEI, o microempreendedor individual, é a tendência do mercado de trabalho no Brasil.
Aplicativos de delivery e de transporte, por exemplo, estimulam que entregadores e motoristas não só se reconheçam como autônomos, mas se regularizem como MEIs. Até porque travam disputas homéricas na Justiça para evitar o reconhecimento de vínculo empregatício - expressão terminantemente proibida em seus modelos de negócios.
Parte do empresariado brasileiro também pinta o microempreendedor como o trabalhador flexível necessário a uma economia cada vez mais inovadora e competitiva. Um arranjo diferenciado para uma época que supostamente já não combina com o engessamento das regulações trabalhistas.
Criada por uma lei federal de 2008, a política pública que instituiu a figura do microempreendedor individual trouxe para o guarda-chuva do Estado milhões de pessoas que viviam de bicos ou batalhavam na informalidade, sem direito a aposentadoria ou a benefícios previdenciários em caso de gravidez, doença ou acidente.
Estamos falando de muita gente que ganhava a vida tocando pequenos comércios ou prestando os mais variados tipos de serviço por conta própria - de cabeleireiras a mecânicos de carro.
Pagando uma contribuição mensal praticamente simbólica, de até R$ 60 por mês, o MEI tem direito à cobertura mínima do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Não à toa, já existem quase 11 milhões de microempreendedores individuais em atividade no país - quase um quarto do número de trabalhadores com carteira assinada.
Aliás, esse número vem crescendo ano a ano, com a persistência da crise econômica e dos elevados índices de desemprego - hoje, na casa dos 14%. O auxílio emergencial na pandemia, que em sua primeira rodada colocou os MEIs entre os beneficiários prioritários, também deu um empurrãozinho para que mais brasileiros buscassem a formalização como microempreendedores.
Apesar da inegável importância como política de inclusão social, o programa do MEI também tem efeitos colaterais nada desprezíveis. Os reflexos se fazem notar, por exemplo, na necessidade de financiamento da Previdência e na precarização do mercado de trabalho.
Um estudo de autoria de Rogério Nagamine, ex-pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e atual Subsecretário da Previdência do governo, calculou em até R$ 600 bilhões o déficit para o INSS gerado pelo regime do MEI até o ano de 2060.
Isso acontece porque, como dissemos antes, a contribuição feita pelo microempreendedor para o INSS é quase simbólica. Além disso, exatos 37,4% dos MEIs não estão em dia com o pagamento da Previdência, de acordo com dados do Ministério da Economia obtidos por esta coluna via Lei de Acesso à Informação.
Na verdade, esse desequilíbrio financeiro não é essencialmente um problema. O Bolsa Família e a aposentadoria rural também passam longe da sustentabilidade contábil, mas têm papel fundamental para distribuir renda e promover justiça social.
Só que isso também não quer dizer que o sistema MEI não possa passar por ajustes. Uma das primeiras observações a serem levadas em conta é a distinção entre as atividades cobertas pelo regime, explica Mauro Oddo, pesquisador do Ipea.
"Se eu sou MEI e trabalho com conserto de geladeira e faturo R$ 7 mil por mês, eu faturo esse dinheiro praticamente líquido. Agora, se eu tenho um comércio de comida e faturo esses mesmos R$ 7 mil, pelo menos R$ 3 mil eu tenho de gasto", exemplifica Oddo. Cobrar a mesma contribuição para o INSS nesses dois casos soa como um ruído.
Se, mesmo com distorções, a política do MEI tem a virtude de acomodar milhões de brasileiros no colchão da Previdência, também é verdade que ela vem servindo de ferramenta para driblar a legislação trabalhista.
Isso acontece porque há prestadores de serviço contratados como microempreendedores individuais que, na prática, não são profissionais autônomos - mas empregados subordinados a ordens e horários, porém, sem direito a férias e décimo terceiro, dentre outras garantias.
E, ainda falando de Previdência, há um detalhe importante: quando um empregador troca um CLT por um MEI, ele deixa de contribuir para o INSS. Quer dizer, se um funcionário formalizado como microempreendedor se acidenta, por exemplo, os gastos recaem apenas sobre o Estado.
A explosão dos MEIs, segundo Mauro Oddo, pode ser entendida como um alargamento para a base da pirâmide de um fenômeno que historicamente era mais comum no topo: a chamada "pejotização". Essa é a expressão pela qual é conhecida a abertura de empresas por parte de profissionais liberais de renda mais alta - como advogados e engenheiros - para evitar a contratação nos moldes previstos na CLT (a Consolidação das Leis do Trabalho).
"Enquanto o mundo está discutindo a precarização das relações chamadas de uberização, o Brasil criou um instrumento [o MEI] - não pensando nisso, mas que permite isso - e fez uma reforma trabalhista que facilita isso", explica o pesquisador do Ipea. "A gente foi na contramão do caminho de questionar a precarização", complementa.
Treze anos depois de sua criação, o regime de MEI entrou no radar de uma comissão especial do governo federal que analisa e propõe aprimoramentos para políticas públicas. Mudanças no regime dos microempreendedores podem ser esperadas para o curto prazo. O desafio é garantir que o sistema cumpra sua vocação de inclusão social e feche a torneira da precarização.
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