Tema do Enem, trabalho de cuidado vai mudar com envelhecimento populacional
Há pelo menos meio século, a filósofa italiana Silvia Federici escreve sobre o tema da redação deste ano do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio): o trabalho de "cuidado" — não remunerado e socialmente desprestigiado — feito pelas mulheres.
Se o termo ainda soa estranho, a ideia de "cuidado" diz respeito à realização das tarefas domésticas, incluindo aí a criação dos filhos e a atenção a pais e avós. Inegavelmente, é um conceito mais afetuoso do que aquele que, na literatura científica especializada, se convencionou chamar friamente de "reprodutivo". De qualquer maneira, estamos falando daquele trabalho não pago, mas vital à reprodução da espécie humana.
Pioneira do movimento feminista, Federici demonstrou em sua obra como a delegação dessas atividades às mulheres foi essencial para moldar o capitalismo da forma como o conhecemos até hoje. Mas nem sempre foi assim: basta lembrar que, nos primórdios da revolução industrial, mulheres — e crianças! — competiam com os homens pelos empregos nas fábricas criadas na Europa, na primeira metade do século 19.
Manter as mulheres em casa, prossegue Federici, foi uma obra de engenharia social com o intuito de garantir o próprio funcionamento do capitalismo. Para tanto, foram necessárias estratégias de ordem econômica e moral. Primeiro, pagar aos homens um salário que garantisse, ainda que mal e porcamente, a subsistência de toda a família. Paralelamente, cultivar a disciplina de que mulheres "direitas" não deveriam ganhar o próprio dinheiro e gastar como bem entendessem.
Nesse ponto, o que Federici faz, na verdade, é ampliar o foco da análise de outra mulher genial, Rosa de Luxemburgo. Numa leitura para lá de original, Luxemburgo mostrou como o capitalismo, desde o seu nascimento, sempre dependeu de relações não capitalistas para se desenvolver.
Dentre outros exemplos, isso se aplica ao algodão usado como matéria-prima da indústria têxtil, produzido em bases escravistas nos Estados Unidos, e ao trigo utilizado como alimento para a classe operária, plantado em sistema feudal na Rússia.
O trabalho reprodutivo, diz Federici, se insere nesse mesmo contexto de atividades que não são estritamente capitalistas, mas que são indispensáveis ao próprio capitalismo. Afinal, mulheres cuidam, de graça, dos futuros adultos que vão vender sua força de trabalho no mercado.
Mas a grande contribuição da obra da filósofa e ativista italiana talvez se dê no plano político, ao denunciar como o trabalho reprodutivo feminino não remunerado passou longe da lista de preocupações dos movimentos de trabalhadores, mesmo os de esquerda. Como sabemos, o sujeito revolucionário pintado nos manuais sempre foi o proletariado masculino das fábricas.
Na década de 1970, quando o mundo dominado pelo capitalismo industrial começava a se desintegrar, Federici defendia o pagamento de um salário às mulheres ocupadas em tarefas domésticas como forma não apenas de recompensá-las pelo seu trabalho, mas de criar uma identidade coletiva de classe, impulsionando o feminismo.
De lá para cá, uma série de mudanças ocorreram e as mulheres ganharam importante espaço no mercado de trabalho, ainda que diversas pesquisas mostrem que elas ocupam menos posições de liderança e ainda ganham, em média, menos do que os homens. Mas o fato de que o trabalho reprodutivo continua eminentemente feminino se mantém inabalado, em todo o mundo.
Só que repensar o trabalho reprodutivo não requer apenas uma necessária discussão sobre os papéis de gênero — não se trata tão somente de dividir igualitariamente as tarefas domésticas entre homens e mulheres.
Para além dessas mudanças culturais e comportamentais, há desafios nada triviais no futuro próximo que vão exigir uma profunda mudança na forma como encaramos o trabalho reprodutivo. O acelerado envelhecimento populacional é, certamente, um dos principais.
Isso talvez demande políticas ainda pouco verossímeis nos dias de hoje, como a redução da jornada de trabalho e a garantia de uma renda básica universal.
Indo direto ao ponto: muito em breve, as pessoas vão precisar de mais tempo — e de algum dinheiro mínimo — para cuidar de seus pais e de seus avós. Na ponta fria do lápis, isso pode inclusive sair mais barato do que ampliar os serviços públicos e privados para atender a população idosa.
Historicamente, esse trabalho sempre coube às mulheres. Governos e sociedade civil precisam se mobilizar para que elas não continuem sobrecarregadas com essas tarefas, quando todos estivermos mais velhos e precisarmos de cuidados.
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