Felipe Salto

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Opinião

Reforma tributária é tiro no escuro

Tenho muitas críticas à reforma tributária tal como apresentada. A proposta é fruto do trabalho de Bernard Appy, que é um economista respeitado e com espírito público, estudioso dos temas fiscais e tributários. A chamada PEC nº 45, a meu ver, peca por ser abrangente e ambiciosa. Ao mesmo tempo, fere os princípios constitucionais que fundamentam o federalismo.

A Câmara dos Deputados recebe, agora, o texto aprovado no Senado Federal, com suas alterações. Mas há ainda a possibilidade de que se promulguem os dispositivos não alterados de modo apartado. É o chamado fatiamento. Uma péssima ideia, diga-se de passagem.

A reforma preconiza acabar com o PIS, a COFINS e o IPI (federais) e com o ICMS e o ISS (estadual e municipal, respectivamente). Em seu lugar, o famigerado IVA dual, um imposto para incidir sobre o valor agregado de todas as operações com bens e serviços. Dual, porque se divide em CBS (federal) e IBS (subnacional). No primeiro caso, a transição se daria até 2027. No segundo, do IBS, começaria apenas em 2029. E esta é minha primeira crítica, para não mencionar a criação do Imposto Seletivo (IS) e da CIDE-Importações. Outras duas sandices, que poderei comentar oportunamente neste espaço.

O IBS, que figuraria até 2028 com uma alíquota de 0,1%, a fim de arrecadar recursos adicionais para financiar o seu Comitê Gestor, passaria a substituir o ICMS e o ISS, a partir de 2029, por meio de reduções de 10% ao ano nas alíquotas desses dois tributos. Isto é, em dezembro de 2032, as alíquotas do ICMS, por exemplo, ainda figurariam em 60% das atuais. A promessa é que, em 2033, não existam mais o ICMS e o ISS, sendo o IBS concentrado totalmente no destino das operações com bens e serviços.

A palavra destino pode confundir. Mas não é difícil de entender. Hoje, o ICMS é recolhido majoritariamente na origem das operações. Quando se vende uma mercadoria de um estado para outro, recolhe-se o imposto na origem, por meio da chamada alíquota interestadual. A diferença entre essa alíquota e a que vigora no estado de destino (a interna) enseja oferta de créditos, um dos combustíveis mais sórdidos da guerra fiscal.

A alíquota interestadual também é utilizada para conceder crédito na saída dos produtos. Exemplo, uma grande montadora se instala em um estado que tem alíquota interestadual mais alta, porque o governador ou governadora daquele estado decide conceder um crédito outorgado de 95%, isto é, o contribuinte recolhe só 5% da alíquota. Com isso, fabrica uma montanha de créditos podres, estimulando a má alocação de recursos econômicos entre as diferentes regiões.

Quando se promete a migração para o destino, isso soa como música para os ouvidos de todos que produzem no Brasil e conhecem as agruras do sistema atual. Mas, se ela não vai ocorrer por uma década e pode morrer na praia, na véspera de 2033, que vantagem há nisso? Digo que pode morrer na praia, porque uma transição cujo ponto final é 60%, como expliquei, é convidativa à proposta de extensão de prazo. O filme é conhecido. Lá me 2031 ou 2032, alguém proporá a prorrogação e uma nova PEC será aprovada. Não precisa ter bola de cristal. Basta ler um pouco sobre a história econômica do Brasil.

É assim que a guerra fiscal entre os estados não vai terminar, mas será estimulada. Não apenas porque o ICMS remanescerá, com todos os seus problemas, até 2032, como porque os benefícios fiscais estão sendo blindados no período todo. Diz-se que a Lei Complementar nº 160, de 2017, impediria o encerramento dos benefícios. Ora, está-se alterando a Constituição, que é superior. Não para de pé esse argumento. Pior, criam-se dois fundos com uma fábula de recursos da União para estimular ainda mais a guerra.

O Fundo de Compensação dos Incentivos do ICMS começará a receber R$ 8 bilhões de aportes, que vão crescendo ao longo dos anos, já em 2025. Cabe questionar: se a transição se inicia em 2029, por que vamos torrar todo esse dinheiro já a partir de 2025?

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Não bastasse isso, há ainda o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, cujo nome remete ao guarnecimento de iniciativas para promover investimentos e desenvolvimento integrado. Será? Combinado com o fundo de incentivos e, depois, vigorando de modo solteiro, ele vai angariar R$ 60 bilhões por ano de recursos públicos. De onde eles virão? Igualmente importante: para onde irão?

Na minha conta, será preciso uma alíquota adicional de 1,5%, além dos 33,5%, nas contas que fiz para nossos clientes na Warren Investimentos, se for pago com o IVA dual. A saber, o Senado inseriu no texto uma espécie de trava para a carga tributária. Eu costumo dizer que é um sistema com duas equações e cinquenta incógnitas. Aprendemos, na matemática básica do colégio, que não tem como solucionar. Se o ajuste não se der por meio de carga, terá de ocorrer com mais e mais aumento da dívida pública.

Se o Erário vai bancar tudo isso, por que não trazer a transição para mais perto, encerrando-a mais rapidamente? Os benefícios fiscais do ICMS serão mantidos e somados a essa montanha de recursos dos fundos, que vão se transformar em mais subsídios concedidos pelos estados. A guerra vai ser mantida e ampliada. É o que posso prever do texto sobre a mesa. Perde-se a oportunidade de efetivação de uma reforma tributária digna desse nome.

O Comitê Gestor é um capítulo à parte, vale dizer, no rol de problemas da PEC nº 45. Ele será comandado politicamente, terá funções de arrecadação, fiscalização, controle, partilha de recursos entre os entes federados, devolução de créditos tributários para contribuintes e resolução de conflitos com o Fisco. Acaba-se, literalmente, com a federação. Ou é possível comandar algum estado ou município sem ter o controle das próprias finanças?

Tudo vai se resumir a um guichê de negociação em Brasília. Falava-se que o Comitê Gestor seria um mero algoritmo. Nunca vi algoritmo que vai precisar ter procuradores de estado, auditores fiscais, técnicos de toda sorte, orçamento e tudo mais. Mais grave é que não se sabe ao certo como funcionará. Este e outros tantos temas estão ficando para regulamentação por leis complementares. Um risco altíssimo, que vai se materializar assim que a nova Emenda Constitucional for promulgada.

Melhor seria um caminho como o proposto pelo grande Clóvis Panzarini, lá em 1987 e 1988, com a transformação do ISS em um imposto sobre vendas e alíquota baixa, ampliando-se o ICM para ICMS, por meio da incorporação dos serviços. A gestão seria estadual, evitaríamos toda sorte de questionamentos jurídicos, evoluiríamos a partir do duro aprendizado das últimas décadas. Era algo assim que eu propunha no ano passado, quando o próprio Bernard Appy me visitou, na Secretaria da Fazenda e Planejamento de São Paulo, para apresentar a versão daquele momento para a PEC nº 45.

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Infelizmente, caminhamos para piorar o sistema tributário do consumo, que já é muito ruim. Estamos jogando pela janela a oportunidade de aprimorá-lo. Medidas incrementais, nessa matéria, têm chance muito maior de sucesso. Ao promover uma reviravolta no capítulo tributário da Constituição, saltamos fundo no escuro. As negociações e concessões que foram feitas no texto materializam-se também nas exceções à alíquota geral (e são múltiplas), sobretudo quando consideramos que ainda virá uma lei complementar para pormenorizá-las.

É um equívoco comparar o texto da PEC, nesse aspecto, ao RICMS - Regulamento do ICMS - mantido hoje em cada estado. Vamos ter de comparar, isto sim, as leis, decretos, regulamentos e portarias, quando existirem, do IBS e da CBS, aos atuais normativos. Esta seria a correta comparação. O resto é fruto de bateção de bumbo pura.

Tudo indica que a matéria caminha para ser aprovada, caro leitor. Então, de duas, uma: ou vamos revisitar o tema muito antes do que o imaginado ou vamos testar a reforma, por alguns anos, para concluir que será preciso reformar o novo monstrengo tributário em pouquíssimo tempo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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