Felipe Salto

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Opinião

O risco de mexer no arcabouço fiscal

A Câmara aprovou um novo texto para o artigo 14 da Lei Complementar nº 200/2023, mais conhecida como Novo Arcabouço Fiscal. Trata-se de alteração no dispositivo que, na redação atual, permite ao governo ampliar o limite de gastos de 2024 em situação específica de maior otimismo na projeção de receitas públicas, após a avaliação orçamentária do segundo bimestre. A ideia é retirar a restrição temporal e permitir a subida do limite desde já.

No Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) apresentado no final de março, o chamado relatório bimestral, o governo indicou um cenário mais realista em relação ao da Lei Orçamentária Anual. Contudo, o déficit projetado ainda é bem próximo de zero, com receitas estimadas para o ano em níveis muito altos. Mesmo assim, houve um bloqueio de despesas discricionárias (não obrigatórias) de R$ 2,9 bilhões, em razão do novo limite de gastos, que exerceu seu peso sobre as despesas projetadas.

As receitas líquidas estimadas pelo governo no RARDP de março estão em R$ 2.175,2 bilhões, um aumento projetado de R$ 275,8 bilhões em relação a 2023 ou 10,1% em termos reais. No acumulado de janeiro a março, a alta real das receitas líquidas do governo central ficou em 9,6% em relação ao mesmo período de 2023. (Dados do SIGA-Brasil para março).

Então, em um exercício de simulação, se as receitas líquidas crescessem à mesma taxa do primeiro trimestre, que foi muito bom, ainda que recheado de efeitos atípicos e receitas incertas, é verdade, teríamos um total de R$ 2.165 bilhões no ano de 2024. Esse patamar seria R$ 10,2 bilhões inferior ao projetado no RARDP do primeiro bimestre.

Mas, se houver, digamos, uma desaceleração, ao longo do ano, dada a saída de parte dos efeitos da tributação inicial dos fundos fechados e de outros fatores atípicos, como a receita recolhida em cima da distribuição dos precatórios antecipados, e a receita líquida acabar crescendo a 8% (ainda uma taxa real elevada), a perda de R$ 10,2 bilhões subiria para R$ 42 bilhões.

Tudo o mais constante, o déficit projetado pelo governo saltaria de R$ 9,3 bilhões para R$ 45,3 bilhões (a piora é um pouco mais branda do que a redução na estimativa de receita líquida, em razão da redução na projeção das transferências a estados e municípios). E nem estamos contando com a necessária recomposição de gastos obrigatórios subestimados no Orçamento.

O gasto total primário (sem contar juros da dívida) é estimado pelo governo em R$ 2.184,5 bilhões no RARDP do primeiro bimestre. Destes, R$ 204,4 bilhões são despesas discricionárias (não obrigatórias, em tese), das quais R$ 2,9 bilhões foram bloqueadas (bloqueios estes realizados em razão do estouro iminente do limite de gastos da LC 200) e R$ 5,6 bilhões em emendas parlamentares de comissão foram vetados pelo Presidente da República, perfazendo R$ 8,5 bilhões. Além disso, em relação às discricionárias da LOA (R$ 208,9 bilhões), houve também uma "reestimativa" de menos R$ 4,5 bilhões.

O limite de gastos calculado conforme a regra da LC 200 é igual a R$ 2.089 bilhões para 2024 (lembrando que nem todas as despesas são sujeitas ao limite, como já ocorria no teto anterior). O limite foi calculado com base em uma variação real de 1,7%, isto é, a variação real em 12 meses da receita líquida ajustada até o meio do ano passado multiplicada por 70%. A isso se soma a inflação.

Se aplicarmos a regra do artigo 14 da LC 200, o limite ficaria mais alto. Na verdade, o dispositivo permite (e não obriga) que o governo proponha ao Congresso uma suplementação do limite de gastos se, após o RARDP do segundo bimestre (final de maio), as projeções para a receita líquida ajustada multiplicadas por 70% superarem a taxa considerada no cálculo do teto original (1,7%).
Para ter claro, se o governo projetar, por exemplo, 3,6% de crescimento real para as receitas líquidas ajustadas, 70% disso resultaria em 2,5%, percentual máximo permitido pela LC 200 para a correção do limite de gastos e 0,8 ponto de percentagem superior ao 1,7% usado para calcular o limite de 2024 já enunciado (R$ 2.089 bilhões).

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Como a taxa de variação de 3,6% real é bastante conservadora, a meu ver, a chance de o governo estar em condições de lançar mão do artigo 14 e elevar o limite de gastos de 2024 (no máximo valor possível) é altíssima, após a apresentação do RARDP do segundo bimestre. O aumento do limite seria de 0,8% vezes a base de 2023 (R$ 1.964 bilhões), isto é, R$ 15,7 bilhões.

Contudo, se o resultado primário, no mesmo relatório, estiver muito próximo ou igual à meta fiscal fixada para o ano, essa suplementação estaria impedida. No mínimo, haveria uma controvérsia e o TCU teria de ser demandado a avaliar a questão (em tese, pois ele não pode avaliar questões específicas, não custa lembrar). De todo modo, de que adiantaria jogar o limite para cima se o primário acabasse por bloquear gastos para valer? De nada.

Ocorre que é muito provável a materialização desse cenário de aperto nas projeções do governo para o resultado primário de 2024 já no RARDP de maio. Como vimos, as receitas estimadas oficialmente ainda estão bem polpudas. A tendência é que sejam revisadas para baixo.

As despesas obrigatórias estimadas, por sua vez, precisarão ser recompostas. Terão de subir. É o caso das despesas previdenciárias, que estão projetadas em R$ 914,2 bilhões, quando, na Warren Investimentos, calculamos R$ 932,5 bilhões. Uma "pequena" diferença de R$ 18,3 bilhões a ser recomposta. Então, o déficit projetado, no cenário de alta real de 8% para as receitas líquidas, passaria de R$ 45,3 bilhões para R$ 63,6 bilhões.

Farejando a escassez e a situação de penúria, os atores políticos favoráveis à expansão do limite de gastos aceleraram a tramitação da proposta de mudança do Novo Arcabouço Fiscal. Aprovou-se a medida na Câmara e, agora, o Senado terá de apreciá-la.
A ideia é trazer para o presente a possibilidade de uso do mecanismo de reajuste do limite de gastos. Além disso, não seria mais preciso enviar um projeto de lei para suplementar o Orçamento ao Congresso Nacional. A medida dar-se-ia por ato do Poder Executivo. É preciso questionar: não há vício de iniciativa nesse movimento? O Congresso, por acaso, pode propor mudança no regramento orçamentário-fiscal? A meu ver, trata-se de matéria reservada ao Poder Executivo, conforme a Constituição Federal. Mas isso eu deixo para os amigos juristas.

E por que trazer para já a subida do limite? É que, se a autorização não estiver sujeita ao período pós segundo relatório bimestral, o cenário de folga fiscal apresentado no RARDP do primeiro bimestre poderia garantir a expansão do limite sem questionamentos.
Repito: o déficit primário projetado pelo governo no relatório do primeiro bimestre está em R$ 9,3 bilhões. A meta, com banda, é um déficit de R$ 28,8 bilhões. Logo, o limite de gastos poderia ser expandido para pouco mais de R$ 2.104 bilhões (subida de R$ 15,7 bilhões) e o déficit primário projetado pelo governo, a partir do RARDP do primeiro bimestre passaria para R$ 25 bilhões (ante aos R$ 9,3 bilhões iniciais), ainda com folga de R$ 3,8 bilhões em relação à meta (com banda). Lembrando: a meta fiscal é igual a zero, mas a banda é de -R$ 28,8 bilhões.

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A verdade é que mora na cabeça dos atores políticos que brigam pela aprovação dessa medida, tanto no seio do governo como na cúpula do Congresso, a ideia fixa de usar R$ 15,7 bilhões em espaço fiscal adicional para gastos novos. Mas, não é bem assim.
Partindo-se do cenário hipotético de R$ 63,6 bilhões de déficit primário projetado, a partir das premissas acima listadas (otimistas) e do cenário inicial do próprio governo, o cumprimento do limite inferior da meta zero (-R$ 28,8 bilhões) requereria contingenciamento e/ou bloqueio de gastos de R$ 34,8 bilhões. Mantido o veto de R$ 5,6 bilhões nas emendas de comissão e o bloqueio já anunciado e decretado de R$ 2,9 bilhões, já se tem uma ajuda de R$ 8,5 bilhões. O contingenciamento permitido antes da majoração do limite de gastos é calculado em R$ 22 bilhões (lembrando que a regra de contingenciamento da LDO ainda pende de avaliação do TCU). Sob o novo limite, subiria para algo como R$ 38 bilhões.

A meta estaria cumprida (considerada a banda inferior), mas o contingenciamento não seria pequeno. E observe que todo o aumento do limite promovido (R$ 15,7 bilhões) teria de ser destinado para suplementar os gastos obrigatórios previdenciários hoje subestimados. Não é, definitivamente, o desejo dos políticos que mobilizaram mundos e fundos para avançar com essa mudança do Novo Arcabouço Fiscal na semana passada.

Qualquer desvio em relação ao uso do espaço adicional no limite de gastos, caso suba (principalmente se isso ocorrer precocemente), representaria vazamentos para aumento de despesas discricionárias, inclusive emendas, e elevaria as necessidades de contingenciamento ou de alta de receitas, dificultando ainda mais o cumprimento da meta de resultado primário.

Este é o problema: quem pede a mudança do Novo Arcabouço Fiscal não quer destinar a maior parte do aumento do limite para a previdência, mas para gastos discricionários. Ato contínuo, os mesmos atores vão bloquear o contingenciamento que será necessário para cumprir as metas fiscais. Caminho para o fracasso, pois a meta fiscal teria de ser alterada e o arcabouço se desmancharia no ar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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