Felipe Salto

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Opinião

Dívida e Conselho de Gestão Fiscal: 'Back to basics'

Nos últimos dias, surgiu uma proposta para a dívida dos estados. A ideia é simples, bem-intencionada, mas vejo muitos problemas para operacionalizá-la; riscos, também. Propõe-se trocar uma redução na taxa de juros da dívida dos estados com a União por um compromisso em relação às matrículas escolares. Melhor seguirmos caminho mais estruturante, adotando-se os instrumentos à disposição na legislação vigente, como discutirei.

Primeiro, vale lembrar que já se trocou o indexador da dívida dos estados, no passado recente, inclusive mérito de um esforço grande do então Prefeito de São Paulo Fernando Haddad. O indexador da dívida era baseado no "IGP-DI + 6% a 9%" ao ano.

A mudança foi para "IPCA + 4%" ou Selic, o que fosse menor. Isto é, estabeleceu-se uma indexação mais próxima do que a União oferta ao mercado nos títulos emitidos por ela própria, em média, para financiar seus déficits (despesas não cobertas por receitas tributárias).

Como a troca retroagiu à data do início da vigência dos contratos de renegociação, o acordo maior já foi feito, digamos, do ponto de vista da justiça econômica ou mesmo do equilíbrio fiscal-federativo.

Vale lembrar que, em 1997, com a Lei nº 9.496, a renegociação da dívida foi bastante inteligente, a meu ver. A ideia era esta: os Estados emitiam, pelo risco inerente à sua dinâmica fiscal insustentável, em muitos casos, a taxas de juros muito elevadas para captar recursos no mercado e financiar seus déficits. A dívida tornara-se insustentável, do ponto de vista da comparação com qualquer indicador de geração de receitas ou mesmo com o PIB.

A União, então, assumiu a dívida dos estados (e dos Municípios) e tornou-se a sua credora. No lugar das dívidas de cada um dos entes, emitiu-se um volume de Letras Financeiras do Tesouro (LFT) a um custo bem mais razoável, de um lado, enquanto a União passou a deter um ativo junto aos Estados, remunerado, inicialmente, a "IGP-DI + 6% a 9%" ao ano, mas depois (2014) revisado para a menor das taxas entre IPCA + 4% e Selic.

A meu ver, portanto, não caberia mais discutir uma revisão, do ponto de vista de eventuais descasamentos de taxas médias entre a dívida mobiliária federal e a dívida dos Estados com a União. Contudo, sabemos que o quadro fiscal federativo caminha para ser cada vez mais grave, dadas as decisões dos últimos anos no âmbito das limitações à geração de receitas e mesmo à ausência de reformas estruturantes para temas espinhosos: previdência e pessoal.

Nesse sentido, vejo que é preciso aproveitar a oportunidade aberta pela atual discussão sobre a dívida dos Estados não para se pensar em uma regrinha de renegociação, troca de indexador ou mero perdão de dívida, com contrapartidas fracas. Acho que temos nas mãos uma oportunidade de ouro para conduzir um novo modelo federativo-fiscal, à luz dos princípios da Constituição Cidadã e da legislação pertinente. Falarei um pouco sobre isso.

Como se sabe, há estados e estados nessa matéria fiscal. São Paulo, por exemplo, nunca ficou inadimplente, apesar de só levar nota "B" na classificação do Tesouro Nacional, que já critico há bastante tempo, quando deveria levar no "A". Essas coisas estranhas se devem à falta, antes de tudo, de uma instância federativa à altura dos desafios do país.

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O Ministro Paulo Guedes propusera o chamado Conselho Fiscal da República, mas penso que o Conselho de Gestão Fiscal (CGF), já contemplado na própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF - Lei Complementar nº 101/2000) daria conta do recado. Ele precisa ser instalado e começar a funcionar, isso sim.

Na ausência do CGF, os Estados estão sujeitos à régua do Tesouro Nacional, que trata a todos do mesmo modo, em que pesem os esforços para rever os critérios de classificação de risco, reconheça-se. Além disso, pendem questões de harmonização contábil, controle fiscal, coordenação federativa e consolidação das contas, que poderiam avançar - e muito.

Como discutir a dívida dos entes sem ter um fórum para tanto? Precisamos "back to basics", como se diz em inglês. Fazer o feijão com arroz, para depois pensar, talvez, em coisas mais mirabolantes.

O CGF está previsto no artigo 67 da LRF, a saber:

"Art. 67. O acompanhamento e a avaliação, de forma permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal serão realizados por conselho de gestão fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, visando a:

I - harmonização e coordenação entre os entes da Federação;

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II - disseminação de práticas que resultem em maior eficiência na alocação e execução do gasto público, na arrecadação de receitas, no controle do endividamento e na transparência da gestão fiscal;

III - adoção de normas de consolidação das contas públicas, padronização das prestações de contas e dos relatórios e demonstrativos de gestão fiscal de que trata esta Lei Complementar, normas e padrões mais simples para os pequenos Municípios, bem como outros, necessários ao controle social;

IV - divulgação de análises, estudos e diagnósticos.

§ 1o O conselho a que se refere o caput instituirá formas de premiação e reconhecimento público aos titulares de Poder que alcançarem resultados meritórios em suas políticas de desenvolvimento social, conjugados com a prática de uma gestão fiscal pautada pelas normas desta Lei Complementar.

§ 2o Lei disporá sobre a composição e a forma de funcionamento do conselho." (Lei Complementar nº 101/2000. Grifos meus).

Frisei os termos "coordenação" e "controle do endividamento", no artigo acima, pois creio que esse dispositivo traz a base para termos uma espécie de lugar geométrico das discussões federativas. O Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), criado nos anos 1970, não faz nada disso. Hoje é presidido pela União e os Estados arbitram e aprovam seus benefícios e incentivos fiscais do ICMS. Aliás, o Confaz também precisa de uma reforma. Em tempos de Emenda Constitucional nº 132, será importante fortalecer os Estados.

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O CGF, uma vez instalado, poderia estipular um prazo para desenhar uma proposta completa de reforma fiscal-federativa, a partir de princípios escolhidos pelo colegiado, com base na Constituição Cidadã e na LRF. Essa reforma cuidaria dos temas da dívida pública, da arrecadação, do Orçamento, da avaliação do gasto, da normatização e harmonização contábil e da fixação de contrapartidas consensuais todas as vezes em que ocorresse abertura de espaço fiscal.

A propósito, importante a participação do STF, que tem sido demandado fortemente, nos últimos tempos, para resolver conflitos federativos, arbitrar sobre a constitucionalidade de programas de recuperação fiscal, interromper o pagamento do serviço da dívida da União etc.

Vamos ao CGF! Eis a minha proposta.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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