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Como o agro virou a fortaleza eleitoral de Bolsonaro
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Em 1977, Sorriso, uma agrovila perdida no mapa, tinha um único orelhão, no único posto de gasolina, que era também a "rodoviária" de colonos pobres do Sul que deixaram tudo para trás para tentar mudar de vida no nortão de Mato Grosso.
Famílias de gaúchos e paranaenses subiram milhares de quilômetros pela BR-163 (o trecho MT-PA havia sido aberto apenas dois anos antes pelo governo de Ernesto Geisel), sacudindo, com todos seus pertences, a bordo de caminhões velhos, D-10, Brasílias ou o que mais tivessem conseguido como transporte para fazer a mudança. À frente, terra barata, quase nenhuma infraestrutura e promessas de financiamento fácil.
Em 2022, Sorriso é uma cidade de 92 mil habitantes, o município brasileiro que mais produz soja, tem uma renda per capita duas vezes maior do que a nacional e a cidade ostenta uma infraestrutura urbana superior a outras do mesmo porte no Sul e no Sudeste.
As famílias que chegaram do Sul, com a cara e a coragem, a Sorriso —e também a Sinop (146 mil habitantes atualmente), Lucas do Rio Verde (67 mil) ou Nova Mutum (32 mil), só para citar as principais cidades agrícolas do eixo norte da BR-163 em MT - foram as protagonistas da revolução do agronegócio brasileiro nos últimos 40 anos que transformaram uma região longínqua na maior produtora de soja no mundo.
Em 1980, um hectare na região produzia 1.292 kg de soja (21,5 sacas) em média. Hoje, a média por hectare é superior a 4 toneladas (68 sacas). Além do trinômio disponibilidade de terra, oferta de capital (via Banco do Brasil) e muito trabalho duro dos agricultores, o salto de produtividade foi resultado de uma injeção intensiva de tecnologia.
Quase ninguém se lembra, mas, quando a soja foi trazida ao Brasil no século passado, ela era uma cultura agrícola de clima temperado, só se dava bem mesmo nas terras do Sul. Plantar soja numa região onde a temperatura média fica acima de 32ºC na maior parte do ano não era uma coisa simples como é hoje em dia, como conta o economista Júlio César dos Reis, da pesquisador da Embrapa Cerrados (DF).
Para adaptar a cultura ao cerrado, o pacote tecnológico foi desenvolvido em diferentes frentes simultaneamente. Nos primórdios, a recém-fundada Embrapa e a Fundação Mato Grosso (órgão do governo do estado) foram fundamentais nas pesquisas e desenvolvimento de novas cultivares específicas para a nova fronteira agrícola através dos anos. Sementes que iam respondendo cada vez melhor ao clima e ao solo.
Safra após safra, as perguntas sobre quantidades e métodos de aplicação de insumos em cada hectare foram sendo respondidas, com base em tentativa e erro, e padrões foram se sofisticando.
Por último, uma questão crítica e pouco lembrada: quando os primeiros colonos chegaram e substituíram a floresta ou o cerrado nativos por lavoura, a terra quase pôs tudo a perder, porque era muito ácida. Em enormes manchas de território, também havia uma alta concentração de alumínio, bem acima do desejável para lavouras comerciais.
A correção do solo foi um desafio tecnológico de primeira ordem para viabilizar economicamente aquelas fazendas.
"E, além de tudo, naquele momento, havia um entendimento completamente diferente da questão ambiental no Brasil. Era o Estado brasileiro que estimulava e apoiava a expansão da área agrícola sobre o ecossistema. Hoje, tantas décadas depois, a questão ambiental é muito diferente", disse Reis, da Embrapa.
Mais: ainda em 1983, quando muitos produtores ainda se esfalfavam para entender como tirar mais do solo, o governo de João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, concluiu a ligação asfáltica entre Sinop e Cuiabá, permitindo que a soja colhida naqueles remotos campos pudesse ser transportada até o Centro-Sul.
Não é de espantar que aqueles pioneiros e seus descendentes - muitos deles, multimilionários com diplomas de ensino superior de primeira linha - não compartilhem a mesma opinião desfavorável sobre o regime militar com as classes médias urbanas.
Se em muitas rodas instruídas de São Paulo ou do Rio prevalece uma memória da tortura e do arbítrio nos chamados Anos de Chumbo, nos motores do agro no Centro-Oeste brasileiro o período Geisel-Figueiredo (o da abertura propriamente) foi um período em que o Estado brasileiro instou famílias de agricultores a partirem para o Norte em busca de prosperidade.
Um episódio pitoresco: alguns anos atrás, grandes produtores de soja de Sinop e região acabaram se cansando de esperar o poder público equipar o aeroporto local com instrumentos que permitiriam a operação de aviões comerciais de maior porte. O grupo bateu à porta da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e saiu com um acordo: a agência homologaria os instrumentos se a iniciativa privada comprasse e doasse para o aeroporto público, incluindo o treinamento de pessoal. Dito e feito.
O Aeroporto Presidente João Figueiredo —homenageado por ter levado o asfalto nos anos 1980— hoje opera com voos diários da Latam, Gol e Azul para o resto do país, facilitando o deslocamento de quem precisa ir à região para fechar negócios. Quem pôs o dinheiro diz ter recuperado o investimento com economia de tempo. Hoje, o local opera sob concessão pela iniciativa privada.
Nesta terra onde dinheiro e pragmatismo reinam, a oferta de single malts e grandes champagnes nas gôndolas dos supermercados é similar à de templos de consumo de luxo nos Jardins, Itaim ou Leblon.
Bolsonaro: afinidade ideológica e conveniência
No último domingo, as quatro grandes produtoras de grãos do norte de Mato Grosso descarregaram um caminhão de votos na reeleição de Jair Bolsonaro (PL). Sinop deu 72% dos votos válidos ao presidente. Sorriso, Nova Mutum e Lucas, 70%.
A ligação com Bolsonaro vem da campanha passada, quando o presidente também alcançou números similares no segundo turno na região. Bolsonaro suplantou o tradicional voto dos agricultores no PSDB, que vigorou entre 1994 e 2014.
(De certo modo, trata-se de uma transformação de perfil eleitoral que partes do interior de São Paulo estão vivenciando hoje, após terem levado o bolsonarista Tarcísio de Freitas ao segundo turno da eleição estadual no lugar de um candidato do PSDB, partido que governa SP desde os anos 1990.)
Ideologicamente, o setor agropecuário sempre olhou com desconfiança para os governos do PT. É um fenômeno que ganhou corpo nos anos 1990, auge das invasões de terra pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), de quem os petistas sempre foram próximos.
Para diminuir resistências, em seu primeiro mandato, Lula nomeou Roberto Rodrigues, um dirigente de cooperativas com bastante trânsito no setor, e se aproximou de alguns pesos-pesados, como o então governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, à época o maior plantador de soja do mundo.
Mas a cooptação de lideranças nunca se reproduziu na base do agronegócio, que sempre votou em quem se apresentasse em melhores condições de bater o PT nas urnas desde Collor em 1989.
Com o colapso tucano na campanha nacional em 2018, Bolsonaro avançou neste eleitorado com promessas de interromper demarcações de terras indígenas, ser linha-dura com o MST, acabar com a "indústria da multa" do Ibama e liberar a aquisição e o porte de armas em toda a extensão da propriedade rural, não só na sede da fazenda.
"A [ex-ministra] Tereza Cristina foi uma interlocutora muito importante destes setores do agro no ministério. Sob o ponto de vista desses agentes, ela foi feliz na tentativa de abrir novos mercados, desburocratizou a liberação de novos defensivos agrícolas e conseguiu carrear valores interessantes para o Plano Safra", avalia o economista Leandro Gilio, pesquisador do Insper Agro Global, em São Paulo.
"Não que outros governos tenham sido ruins para o agro na região, mas o alinhamento ideológico agora é maior", diz.
Gilio nota que a questão de desmatamento da Amazônia é um risco estratégico. Segundo ele, com a principal área produtora de soja já consolidada, o avanço do desmatamento em outras áreas, como o sul do Pará, traz prejuízos à imagem de todo o setor. "As grandes empresas são conscientes de que frear o desmatamento é uma necessidade por causa do cenário global", diz.
A questão logística, afirma o especialista, avançou: a conclusão do asfalto até o porto de Miritituba (PA), pendente desde a criação da rodovia, foi inaugurada em 2019, a Rumo anunciou grandes investimentos na região e a Ferrogrão, ferrovia de 933 km, ligando o Centro-Oeste ao Pará, aguarda por edital no âmbito do Programa de Parcerias e Investimentos.
Neste sentido, a Ferrogrão é estratégica para o setor nas próximas décadas: se a soja for transportada sobre trilhos de Mato Grosso aos portos do chamado Arco Norte, é possível que o grão chegue aos portos da China continental mais barato do que a concorrente do Meio-Oeste dos Estados Unidos.
Não causa surpresa, portanto, que o norte de Mato Grosso tenha sido o destino de Flávio Bolsonaro para passar o chapéu em setembro, quando a campanha de Jair Bolsonaro começou a ter problemas de dinheiro.
Aproximação com a Faria Lima
O agro representa 25% do PIB (Produto Interno Bruto), mas as empresas do setor pesam só 4% do Ibovespa, o índice de referência do mercado, o que é um indicativo de uma mudança mais profunda de como o setor vem conseguindo captar dinheiro mais barato para se financiar.
Apenas entre 2021 e o primeiro trimestre deste ano, companhias do setor levantaram R$ 10 bilhões em IPOs (ofertas públicas iniciais) e operações de follow-on (novas emissões de ações após o IPO).
O boom de CPFs na Bolsa também favoreceu o agro. Em 2020, segundo dados da B3, 130 mil pessoas físicas detinham uma posição de R$ 39,4 bilhões em CRAs (Certificados de Recebíveis do Agronegócio). No segundo trimestre de 2022, o número de investidores individuais quase havia dobrado (258 mil) e a posição total alcançou R$ 61,3 bilhões (+55%).
Os CRAs são títulos de renda fixa lastreados em recebíveis de negócios entre produtores rurais, cooperativas ou terceiros, como empréstimos relacionados à produção, comercialização ou beneficiamento de produtos, insumos agropecuários ou maquinário.
Outro instrumento de financiamento do setor foi regulamentado sob o atual governo na Lei nº 14.130/2021, que instituiu os Fiagros (Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais).
Análogo aos populares FIIs (fundos de investimento imobiliário), o Fiagro permite a qualquer investidor injetar dinheiro diretamente no setor (com a aquisição de imóveis rurais, por exemplo) ou indiretamente (com a aplicação em ativos financeiros atrelados ao agronegócio). Os fundos serão geridos por instituições do mercado financeiro, como bancos e distribuidoras de títulos e valores mobiliários.
"O que está acontecendo com o agro hoje é o que aconteceu com o segmento de construção há 15 anos. O segmento de construtoras era completamente desconectado do mercado de capitais e isso, pouco a pouco, veio mudando", diz Tiago Reis, fundador da Suno, grupo composto de casa de análise de ativos e uma gestora.
"Nos próximos cinco ou dez anos, o mercado de Fiagros vai ser maior do que o de fundos imobiliários, porque o agro é um mercado muitas vezes maior do que o tamanho do real estate [setor imobiliário] na economia", aposta Reis.
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