Manejo da dívida pelo Tesouro acentua risco fiscal, diz especialista
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O déficit nominal público, que rondava em torno de 6% antes da pandemia, vai se elevar, em 2020, para 15% do PIB. Para financiar a explosão de despesas públicas, que tem ajudado a sustentar grupos vulneráveis, apoiar empresas e reduzir danos do desemprego, evitando um mergulho mais acentuado da atividade econômica, o Tesouro Nacional está às voltas com uma dívida pública em crescimento acelerado.
Calcula-se que a dívida pública bruta ultrapassará 100% do PIB neste ano, adicionando mais de 10 pontos percentuais a uma relação que, já em 2019, era considerada excessiva para um país de renda média. O Tesouro tem enfrentado dificuldades para administrar essa dívida gigantesca, que cresceu muito rápido. É uma situação preocupante.
Parte dessas dificuldades deriva da estratégia adotada na gestão da dívida. Para evitar aumentos excessivos de custos da dívida, o Tesouro tem oferecido títulos públicos em prazos cada vez mais curtos. Atende assim a exigências do mercado, que está cobrando prêmios crescentes para compensar o risco de carregar maiores volumes de papéis públicos com vencimentos mais longos. Tais prêmios refletem desconfianças em relação à trajetória futura da dívida, pressionada pelos elevados déficits públicos, e pelas incertezas sobre a contenção de gastos no pós-ápice da pandemia.
Com o encurtamento dos prazos dos papéis colocados pelo Tesouro, de janeiro a agosto de 2020, o prazo médio de vencimento da dívida pública encolheu de 5,5 anos para menos da metade - 2,4 anos. Nessa batida, o Tesouro contratou o vencimento de quase R$ 650 bilhões de títulos, o equivalente a 15% de toda a dívida pública, para o quadrimestre janeiro-abril. Esse montante representa o dobro da média da quantidade de papéis públicos com vencimento nos primeiros quatro meses dos últimos cinco anos.
O economista Manoel Pires, pesquisador na Universidade de Brasília e no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas), onde coordena o Observatório de Política Fiscal, considera que o manejo da dívida pública pelo Tesouro está acentuando o risco fiscal inerente a uma dívida que explodiu com o aumento acelerado dos gastos para o enfrentamento da pandemia. "É uma aposta forte em que as condições fiscais voltarão, rapidamente, à situação pré-pandemia", diz o ex-secretário de Política Econômica, no governo Dilma Rousseff. "Não parece que essa aposta seja realista, e, por isso, o Tesouro deveria aceitar pagar juros mais altos em troca de um alongamento dos vencimentos da dívida"
Com a política de evitar um alongamento do vencimento dos títulos públicos, executada pelo Tesouro em alinhamento com o Banco Central, o governo transmite a mensagem de que tenta evitar uma contração monetária. Essa contração ocorreria se os prazos de vencimento dos papéis da dívida fossem alongados, provocando elevação dos juros e, em consequência, encarecimento do crédito.
Pode-se imaginar que ao tentar impedir uma contração monetária, o governo esteja tentando abrir espaço para uma contração fiscal, que viria com os cortes nas despesas públicas defendidos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe. É uma estratégia arriscada, como explica Manoel Pires, na entrevista a seguir:
O encurtamento do prazo de vencimento dos títulos da dívida pública é inevitável?
Esse encurtamento tem duas origens. Começa em 2015, quando o Brasil perdeu o grau de investimento. Com isso, uma série de fundos de investimentos institucionais, cujas regras vedam aplicação em mercados sem grau de investimento. Esses fundos, em geral, aplicam, preferencialmente, a longo prazo. Então, o país perdeu um grupo cativo e importante de interessados em papéis de prazo mais longo.
O segundo fenômeno que explica o encurtamento é representado pela queda dos juros básicos. Quando isso ocorre, muitos investidores preferem sair da aplicação em papéis da dívida pública ou se concentram no investimento em títulos de prazo mais curtos. Isso se deve à percepção de que, em algum momento, os juros vão voltar a subir, quando então será possível obter juros mais elevados e maiores ganhos.
Esses dois movimentos já estavam acontecendo antes da pandemia. Depois da pandemia, o déficit público subiu bastante e o financiamento de um déficit maior é naturalmente mais complicado. O déficit está sendo financiado por recursos próprios, utilizando o chamado "caixa único" do Tesouro, e com emissão de títulos com prazo mais curto, atendendo ao que o mercado está preferindo. Mas agora, como o déficit está muito mais alto, esse movimento de encurtamento está ocorrendo numa proporção maior.
Essa estratégia é a única possível?
O Tesouro não quer emitir dívida mais cara, está forçando a colocação de papéis mais curtos, aumentando a concentração dos vencimentos. O que está acontecendo ao longo de 2020 é que o Tesouro acentuou o uso de recursos próprios, na administração dívida, reduzindo a sua liquidez, e, ao mesmo tempo, jogando para o início de 2021 uma concentração muito grande de vencimentos. O receio que está surgindo é o de que o Tesouro perca margem de manobra, e tenha de aceitar qualquer taxa de juros que o mercado exigir.
O Tesouro, na minha opinião, perdeu algumas oportunidades de alongar ou reverter esse processo ao longo do ano. Deveria alongar, mesmo pagando um pouco mais caro. A aposta do Tesouro é que o cenário fiscal vai melhorar rapidamente no ano que vem. Esse cenário de melhora da situação fiscal não está nem um pouco claro.
Com isso, o Tesouro se colocou numa situação em que pode ficar muito vulnerável. Essa estratégia só se justifica se as expectativas de melhora muito forte nas condições de mercado se confirmarem. Seja na redução do déficit público, o que aliviaria a pressão de rolagem da dívida, seja pela aprovação de cortes nos gastos públicos, que produza percepção positiva sobre a administração futura da dívida. São dois aspectos que, hoje, parecem improváveis. Então, na minha visão, era preferível aceitar juros mais altos e diluir melhor os vencimentos ao longo do tempo.
O que pode acontecer se o Tesouro insistir nessa estratégia?
Uma possibilidade negativa é que pode acabar, na prática, tendo de rolar a dívida em condições cada vez piores, o que, no final, significaria vai pagar mais caro. Pode ficar refém do mercado, com menor margem de manobra.
Uma segunda situação possível é que o Tesouro acabe sem recursos em caixa para bancar a dívida. Essa, contudo, é uma possibilidade teórica, não vai acontecer. Simplesmente vai acabar pagando os juros necessários para poder se financiar. Mas está comprando um risco.
Quais são esses riscos?
O mais importante é o de que a redução do déficit público não ocorra no montante que o mercado considere suficiente para normalizar a dívida rapidamente. O Tesouro está concentrando sua estratégia na redução ao mínimo do custo de rolar a dívida. Mas o fato é que a política fiscal está dando suporte grande para a atividade econômica e não parece factível um cenário de redução do déficit público tanto quanto seria necessário para essa normalização muito rápida.
Quanto seria necessário cortar do déficit para chegar nessa normalização?
Seria caminhar para a situação anterior à da pandemia. O déficit nominal antes da pandemia estava em torno de 6% do PIB e agora, com a pandemia, vai ficar em torno de 15% do PIB. Um corte dessa magnitude não é factível em prazo curto. Seria mais razoável apostar num cenário em que o déficit se reduza, em linha com um refluxo da pandemia e das restrições à atividade econômica, mas não se pode imaginar ser possível retirar, rapidamente, já em 2021, todos os estímulos que foram dados em 2020 para enfrentar o problema.
Tem ideia de quanto seria essa redução possível no déficit?
É muito difícil saber. Não sabemos bem como a economia vai se comportar, o que ocorrerá com a atividade no caso de uma segunda onda, quando uma vacina eficiente estará disponível em larga escala, entre outros aspectos. O que sabemos é que o desemprego continuará alto na saída da crise, e que uma parte das empresas, principalmente no setor de serviços, vai continuar precisando de suporte no ano que vem. A retirada dos estímulos, que está começando agora, terá de ser avaliada gradualmente. Não acho, em resumo, que o melhor cenário para se apostar, no campo fiscal, seja o da volta rápida à normalidade. Não parece correto aceitar o risco que o Tesouro parece estar assumindo agora.
O Tesouro não dispõe de um colchão de liquidez para enfrentar momentos de dificuldade na colocação de títulos públicos?
Informações sobre esse colchão de liquidez não são públicas, exatamente para não dar ao mercado instrumentos para encurralar o Tesouro. A regra de bolso é que o Tesouro tenha recursos acumulados para três meses de cobertura da dívida. É de se esperar que o colchão existente seja suficiente para pelo menos cobrir esse período de tempo. De todo modo, com essa estratégia de encurtar os vencimentos dos papéis, mesmo que tenha um colchão capaz de honrar todos os vencimentos até o fim do ano, o Tesouro terá outros vencimentos para cobrir mais à frente e aí como ficaria?
Do ponto de vista da diversificação de riscos, seria melhor evitar uma concentração muito acentuada de vencimentos e tentar distribui-los melhor ao longo do tempo. A realidade é que a dívida cresceu, o risco aumentou, e o mercado vai exigir um prêmio mais alto para carregar uma dívida maior e por mais tempo. Eu acho que é melhor aceitar a realidade, promover uma administração mais segura da dívida, evitando se colocar num corner do qual só sairia se tudo desse muito certo.
A recente transferência de mais de R$ 325 bilhões pelo Banco Central ao Tesouro não ajuda a aliviar essa situação de aperto?
Sim, esse dinheiro, com origem em ganhos cambiais, vai, sem dúvida, ajudar na gestão da dívida pelo Tesouro. Mas não de pode esquecer que, se esse montante lá atrás parecia representar muita coisa, com o crescimento da dívida, ficou proporcionalmente muito menor e, sozinho, não é suficiente. Se lembrarmos que estão previstos vencimentos de quase R$ 650 bilhões, nos primeiros quatro meses de 2021, esse dinheiro do BC representa pouco mais da metade do que vence entre janeiro e abril. No fim das contas, o dinheiro transferido pelo BC ao Tesouro é insuficiente para resolver o problema.
É possível imaginar que a estratégia de encurtar e concentrar o prazo dos papéis públicos, para evitar aumentar o custo da dívida, está sendo usada para forçar a adoção de uma política de austeridade fiscal mais forte?
Acho que dá para perceber é que existe um uso da situação de aperto, para mostrar o quanto ela é delicada e preocupante, se não forem feitos cortes importantes nos gastos públicos. Difícil negar a utilização do fato para tentar criar uma situação. Precisa ver, de todo modo, se quem está fazendo esse uso desse argumento está medindo bem os custos e os benefícios.
O que acontece com a economia, na hipótese de uma alteração da estratégia, com alongamento dos prazos de vencimento dos títulos, ainda que com aumento de custos da dívida?
Aumentaria a oferta de títulos públicos, e o mercado iria querer uma taxa de juros maior para carregar mais papéis. O Tesouro quer evitar aumento nos juros de médio prazo, de três, quatro, cinco ou sete anos, não nos juros da taxa Selic. Com isso, o Tesouro está procurando evitar um aumento de juros na economia, do custo do dinheiro na economia, que promoveria um movimento de contração monetária. Isso poderia provocar um efeito negativo sobre investimentos, sobre capital de giro, crédito em geral. Mas tudo depende da quantidade colocada, dos prazos de colocação, da taxa de juros que afinal seria aceita.
Por suas explicações, entende-se que o governo quer evitar efeitos contracionistas na política monetária. Mas, em todos os movimentos do ministro Paulo Guedes e de sua equipe, o que se vê são esforços para praticar uma política fiscal contracionista, com cortes em gastos públicos, para conter a dívida e manter o teto de gastos. Não é contraditório?
São vários estímulos e desestímulos acontecendo ao mesmo tempo. Redução dos juros por um lado, esforço para cortar estímulo fiscal de outro, e, no meio dos dois, a depreciação da taxa de câmbio, tudo pressionando a taxa de juros futuros para cima, com efeitos contracionistas. Não vejo muitas alternativas. Os estímulos fiscais vão ter de ser retirados devagar e a questão do teto de gastos terá de ser enfrentada.
Como enfrentar a questão do teto de gastos?
Meu ponto não é ter ou não um teto. A pergunta, para mim, é se é melhor do ponto de vista da confiança, das taxas de juros, das expectativas, ter um teto inexequível, que leva todo dia a se ficar na iminência de rompê-lo, ou ter um teto exequível, que abra perspectivas razoáveis à frente. Infelizmente, está ocorrendo uma polarização que acaba fechando espaços para uma discussão eficaz do problema.
A questão do aumento de impostos, por exemplo. Isso está em discussão no mundo inteiro porque os buracos fiscais ficaram muito grandes, imensos, e não há como fazer o ajuste apenas com cortes de despesas. Se fizer uma reforma administrava razoável, se aumentar imposto de quem é subtributado, abre-se uma economia fiscal de 1% ou 2% do PIB. Mas essa, no momento, é uma discussão muito difícil entre nós.
Abrir o leque de alternativas, como o mundo inteiro está fazendo, é muito melhor do que o teto de gastos como é hoje. Não adianta prometer controle fiscal, como faz o teto, se ninguém tem clareza de como entregar o prometido. Uma combinação mais razoável de corte de gastos e aumento de arrecadação pode melhorar a situação fiscal com mais segurança, rapidez e eficiência do que se conseguiria com o teto de gastos.
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