José Paulo Kupfer

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Opinião

Incluir e isentar caviar na cesta básica fere de morte reforma tributária

Uma proposta de ampliação da cesta básica nacional e de isenção dos novos tributos sobre consumo, publicada pela associação nacional que reúne os supermercados, nesta terça-feira (2), causou espanto generalizado.

Encaminhada ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a proposta reivindica a ampliação do conceito de cesta básica e a inclusão de itens de luxo nas isenções ou reduções de impostos.

Isenção para artigos de luxo?

O espanto com a proposta da Abras veio da defesa de isenção de impostos para itens como fígados gordos ("foie gras"), camarão, lagostas, ostras, queijos com mofo e cogumelos, e da redução de 60% na alíquota dos impostos para caviar, cerveja, vinho, champanhe e chocolate.

Há riscos ainda maiores, muito mais graves do que o absurdo da proposta de isenção ou redução de tributos de alimentos de luxo. A principal delas é atropelar o objetivo de reduzir a violenta regressividade do sistema tributário brasileiro, previsto na reforma aprovado em 2023.

Reforço de desigualdades

Um sistema tributário é tão mais regressivo quanto taxa menos quem pode contribuir mais. No caso brasileiro, a regressividade é gigante e a Abras simplesmente reivindica acentuar as desigualdade tributárias.

Ao pleitear a ampliação da abrangência da cesta básica para todos, independente do nível de renda, a proposta reforçar as desigualdades. A desoneração da cesta básica é um benefício aos mais pobres no qual os mais ricos pegam carona indevidamente. Cada vez que aqueles que podem mais contribuem menos, as desigualdades sociais e de renda aumentam.

Para evitar essa carona, a reforma prevê um sistema de "cash back", ou seja, de devolução de valores referente a tributos aos grupo específico de beneficiados. Poucos produtos da cesta básica seriam isentos, os demais recolheriam tributos, mas aos mais pobres esse custo seria devolvido.

Perdas tributárias

A Abras, na defesa de isenção ampla numa cesta básica de abrangência elástica, classifica o "cash back" como medida "populista", de "ranço ideológico" e processo nebuloso. Mas, num tempo cada vez mais digital, o processo de devolução via "cash back" não é nebuloso e até relativamente simples.

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Ainda mais depois da recomposição do CadÚnico (Cadastro Único), quase destruído no governo de Jair Bolsonaro. A devolução cairia automaticamente na conta ou no cartão do beneficiado, como já é rotina no Bolsa Família e outros programas sociais. No fundo, não é nada diferente do que já é comum entre consumidores, quando utilizam cartões de crédito ou fazem compras em estabelecimentos que oferecem "cash back".

Outro grave problema da proposta é que dela resultaria perdas tributárias de monta para o governo. A Receita Federal estima perdas de arrecadação em torno de R$ 40 bilhões por ano com essas isenções e reduções de impostos. Além de retirar recursos que poderiam ser aplicados em outros programas, ou, simplesmente, para abater a dívida pública, uma perda de receita dessa magnitude empurrará a alíquota padrão da reforma tributária ainda mais para cima.

Para manter a reforma neutra — ou seja, sem aumentar ou reduzir receitas públicas —, estima-se que a alíquota padrão dos novos tributos sobre o consumo poderão ultrapassar 28%, assumindo o primeiro lugar no ranking das alíquotas mais altas praticadas no mundo. Quanto mais isenções forem concedidas, maior, obviamente, terá de ser a alíquota padrão para manter a receita neutra.

Reforma tributária em perigo

Não é só a Abras que distorce o conceito de cesta básica — e as leis que a definem — para fazer passar o lobby das empresas de alimentos. O setor de bebidas vai na mesma direção.

Começam a circular "estudos" em que se tenta retirar bebidas com até 20% de teor alcoólico — caso das cervejas e dos vinhos — do grupo passível de enquadramento no imposto seletivo, também previsto na reforma tributária do consumo. O imposto seletivo, com alíquotas mais altas, está previsto como forma de desestimular o consumo de produtos que possa causar danos à saúde das pessoas e, em consequência, aos orçamentos da saúde pública.

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No setor de bebidas, o segmento cervejeiro e de vinhos está em luta com os fabricantes de destilados, cujo teor alcoólico supera 20%, para pegar carona no lobby do setor, invocando igualdade de tratamento.

Estas são amostras do que vem por aí, na discussão da regulamentação da reforma tributária do consumo. Considerando a composição atual do Congresso, em que predominam conservadores, reacionários e fisiológicos, são alertas para o risco de que a reforma, que poderia mitigar a regressividade do sistema, colaborando para reduzir as desigualdades sociais e e de renda que nos fazem lamentavelmente famosos no mundo, acabe virando um pastiche.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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