Pisos de saúde e educação pressionam o arcabouço. Entenda
As sinalizações do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante a audiência de quase cinco horas na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (22) deixam claro qual é o grande debate em relação aos gastos do país: as vinculações dos pisos de saúde e educação (do salário mínimo em relação à previdência e benefícios também, mas trataremos disso em outro momento). O debate do tema é fundamental, mas difícil porque desperta paixões, afinal saúde e educação são duas áreas vitais.
Para entender as vinculações:
- A nossa constituição de 1988 (artigos 198 e 212) prevê que gastos com saúde e educação correspondem a um percentual mínimo das receitas públicas (ou seja, o piso é vinculado à receita, a chamada vinculação). Então quando as receitas aumentam, os gastos com saúde e educação crescem na mesma proporção.
- Durante a vigência do teto de gastos (que foi aprovado como emenda à Constituição) os pisos mínimos foram suspensos e esses gastos eram corrigidos apenas pela inflação. Mas com a revogação do teto e aprovação do arcabouço fiscal (uma lei complementar), os pisos voltaram a ser obrigatórios.
- Pela regra do arcabouço fiscal, as despesas como um todo crescem numa proporção menor das receitas (70% das receitas). Se as despesas com saúde e educação crescem a 100% das receitas, em um prazo curto essas despesas vão ocupar todo o espaço das despesas, sobrando muito pouco para os gastos discricionários (custeio e investimentos).
- Pelas projeções do governo, as despesas não obrigatórias, projetadas em R$ 104,9 bilhões em 2026, serão de R$ 11,8 bilhões em 2028, o que na prática levaria a uma paralisia no governo federal. Isso mostra a importância e o timing da discussão.
- Segundo dados recentes do Tesouro, a flexibilização dos pisos de saúde e educação pode abrir um espaço de até R$ 131 bilhões para outros gastos de custeio e investimentos até 2033.
As falas do ministro Haddad sobre o assunto foram discretas por um motivo: o problema é antigo e complexo e gera reações fortes e apaixonadas, afinal desvincular ou alterar essa vinculação reduz o volume de recursos para saúde e educação, o que quando se olha apenas para os números é de fácil defesa (é fácil ser contrário às reduções de áreas tão importantes).
Mas, em geral, as resistências não são acompanhadas do debate da real necessidade do volume de recursos, da necessidade de ter recursos para outros gastos (só para citar um exemplo atual, prevenção a desastres naturais), da qualidade dos gastos e do fato que a regra atual cria despesas permanentes com aumentos eventuais de arrecadação.
Historicamente, governos progressistas tendem a defender as vinculações e governos conservadores tendem a querer desvincular.
Haddad coloca o debate na agenda a conta-gotas numa aparente tentativa de preparar o terreno de um governo progressista, para que a discussão fique mais racional, menos passional e seja possível avançar.
O mercado reagiu imediatamente às falas do ministro em relação à meta de inflação. Haddad disse que a meta de inflação de 3% para um país com as características do Brasil é "exigentíssima", "um negócio inimaginável", o que fez analistas enxergarem a possibilidade de alteração da meta.
Mas o ministro da Fazenda colocou uma alternativa à alteração da meta, que é justamente encontrar o que ele chamou de "regras de vinculação sustentáveis". Essas vinculações incluem os pisos de saúde e educação (além do salário mínimo vinculado à previdência e benefícios, outro debate espinhoso).
Uma longa fala de Haddad na Câmara mostra o raciocínio como um todo:
"Se nós queremos a meta de 3%, que é uma meta ousada para o histórico do Brasil, temos que abrir um pouco o debate e pensar um pouco na questão institucional e verificar regras de vinculação sustentáveis ao longo do tempo à luz da herança que nós recebemos. A partir de um ponto, quando a inflação está baixa, você traz ela para a meta, ela começa a ficar um pouco insensível à taxa de juros. E quando isso acontece, algumas pessoas podem pensar: então vamos abrir mão da meta.
A resposta que eu já dei para várias pessoas que me perguntaram isso: se o Brasil está com dificuldade de cumprir uma meta mais baixa, se a inflação fica insensível à taxa de juro, nós temos que pensar nas condições institucionais do País. Por que ela (inflação) está resistente? Tem uma dimensão institucional. E uma das questões institucionais é o nosso quadro fiscal no sentido amplo, as vinculações, uma série de problemas da nossa Constituição aos quais não foram dados os tratados adequados até agora, na minha opinião".
Durante a audiência, dois deputados mostraram preocupação com o tema, Mauro Benevides Filho (PDT/CE) e Pedro Paulo (PSD/RJ).
Mauro Benevides lembrou que a previsão é que: "em 2027, dos R$ 130 bilhões necessários para a máquina pública funcionar, só teremos 45 bilhões". Para Pedro Paulo, o termo correto da alteração seria revinculação: "Não estamos falando de desvinculação mas adequação à regra do arcabouço, com todas as despesas com regra única".
Ao responder aos questionamentos, o ministro Fernando Haddad lembrou a história das vinculações dos gastos com educação, que vêm de antes da Constituição de 1988, e defendeu uma nova regra que não seja alterada de acordo com o espectro político do governo.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receber"De lá para cá tivemos desvinculações, a chamada DRU [desvinculação de receitas da união] e revinculações contínuas. Quem sabe a gente encontra uma regra melhor do que essa para que ela seja mais respeitada ao longo do tempo por todos os governos:um pacto em torno da saúde, da educação e do salário mínimo que seja sustentável no longo prazo e que não seja feito num governo progressista e desfeito num governo conservador".
Propostas em debate
Está claro que ainda não há uma solução fechada para o problema, mas estudos para começar um debate sobre o tema. Pela regra atual, os gastos de saúde são vinculados a 15% da RCL (receita corrente líquida), e educação a 18% da RLI (receita líquida de impostos).
A fala do deputado Pedro Paulo aponta para uma das possibilidades, que é usar como base para os mínimos a mesma receita usada como referência para o cálculo do crescimento da despesa do novo arcabouço fiscal: a RLA (receita líquida ajustada). A diferença é que esse indicador desconsidera receitas não recorrentes, o que evita que o poder público na ponta contrate despesas permanentes (pessoal, por exemplo) a partir do crescimento de uma receita que é temporária.
Reações
O ministro Fernando Haddad já cita o tema das vinculações publicamente há mais de um ano. Em abril deste ano, o Tesouro Nacional publicou o relatório de projeções fiscais que mostra que a desvinculação abriria espaço de R$ 133 bilhões no Orçamento até 2033. Os ministros da Educação, Camilo Santana; da Saúde, Nísia Trindade, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, já se manifestaram contrários às desvinculações.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.