Todos a Bordo

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Reportagem

Descarbonizar aviação pode encarecer passagem, mas empresas já têm planos

Diminuir as emissões de carbono na atmosfera é uma das metas mais ambiciosas na aviação. O setor tem como objetivo zerar seus níveis de poluição até o ano de 2050, mas, para isso, são necessárias atuações em diversas frentes.

Muitas delas, devem aumentar o preço das passagens. Impacto dessa alta, entretanto, deve ser mínimo se medidas ganharem escala e não forem apenas pontuais.

O que é a descarbonização?

A aviação quer que o saldo de suas emissões de poluentes seja zerado até o ano de 2050. Isso não quer dizer o setor não irá mais poluir, mas, o saldo entre emissões e compensações deve chegar a zero, equilíbrio que é chamado de Net Zero, ou, Zero Líquido.

De fato, ainda haverá poluição, mas o setor buscará medidas para diminuir e capturar o carbono da atmosfera. E não estamos falando apenas do combustível, cuja queima é o principal emissor de poluentes.

SAF, o combustível sustentável

Aviação busca descarbonizar o setor, e combustível sustentável é o principal investimento na área
Aviação busca descarbonizar o setor, e combustível sustentável é o principal investimento na área Imagem: Freepik

Hoje, a maior parte dos aviões consome o querosene de aviação, chamado de QAV. Derivado do petróleo, seu índice de poluição é considerado elevado.

Uma alternativa para seu uso é o emprego de biocombustíveis, derivados de plantas, como o etanol nos carros. Esse conceito é denominado SAF (Sustainable Aviation Fuel, ou, combustível de aviação sustentável).

Ele também gera poluentes com sua queima, mas em índices menores do que o querosene usado atualmente. Entretanto, sua cadeia de produção acaba capturando o gás carbônico emitido na queima dentro dos motores do avião, zerando a emissão.

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É um conceito cíclico, onde o processamento de plantas gera o combustível e novas plantas absorvem o carbono emitido na atmosfera. Nesse sentido, o Brasil tem grande destaque, tanto pelo seu conhecimento na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar quanto na produção de soja, que também pode ser processada para gerar o combustível sustentável.

Mas, além destes dois, outros produtos podem ser convertidos em querosene de aviação sustentável. É o caso materiais excedentes de outros processos industriais, como sebo bovino, óleo de cozinha usado, resíduos de madeira e da própria cana-de-açúcar, e, até mesmo, gases da combustão de processos de refino do aço.

Brasil em destaque

Cana-de-açúcar é um dos principais insumos para a produção do combustível de aviação sustentável no Brasil
Cana-de-açúcar é um dos principais insumos para a produção do combustível de aviação sustentável no Brasil Imagem: georgeclerk/Getty Images

A indústria aérea mundial tem como meta substituir gradualmente o querosene derivado de petróleo nos aviões por combustíveis sustentáveis até 2050. Nesse segmento, o Brasil teria capacidade para autossuficiência e ainda sobraria para exportar, segundo Jurema Monteiro, presidente da Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas).

"O Brasil já demostrou sua vanguarda em biocombustíveis, com o etanol, e tem condições de assumir o protagonismo agora na produção de Bioquerosene de aviação e outros combustíveis"
Jurema Monteiro, presidente da Abear

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O potencial de produção de SAF no Brasil é de cerca de 9 bilhões de litros ao ano, segundo estudo das consultorias RSB e Agroincone promovido pela Boeing. Esse número se refere apenas ao uso de matérias-primas excedentes, e não leva em conta novas produções de etanol a partir da fermentação do caldo da cana ou da extração do óleo de vegetais, como da soja ou da canola.

Ao mesmo tempo, a demanda nacional é de 7,2 bilhões de litros de querosene de aviação sustentável ao ano. Ou seja, o país poderia exportar 1,8 bilhão de litros apenas com produção oriunda de fontes que não são aproveitadas adequadamente hoje em dia.

Esse potencial, inclusive, já é trabalhado por empresas no Brasil. É o caso da Vibra (que usa a marca BR Aviation, adquirida da Petrobras), que quer aumentar a quantidade de biocombustíveis usados na aviação e vê o país como estratégico no cenário mundial.

"O Combustível Sustentável de Aviação (SAF) surge como uma oportunidade única para o Brasil se consolidar como protagonista na corrida por um futuro mais verde e sustentável na aviação. Com uma vasta oferta de biomassa e energia renovável competitiva, o Brasil tem potencial enorme de ser um player global relevante na produção de SAF, impulsionando o desenvolvimento socioeconômico e reafirmando a liderança do país no cenário global de biocombustíveis", diz Marcelo Bragança, vice-presidente de logística, operações e sourcing da Vibra.

Transição pode aumentar preços e afastar passageiros

Aumento dos custos deverá ser repassado aos consumidores e afastar passageiros dos aviões
Aumento dos custos deverá ser repassado aos consumidores e afastar passageiros dos aviões Imagem: Getty Images
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A adoção de novas tecnologias sustentáveis pode aumentar o preço das passagens, o que afastaria os passageiros. Até que elas sejam utilizadas em larga escala, ao menos no começo, as empresas aéreas podem sentir o impacto em seus custos, que acabam sendo repassados ao consumidor.

Sem apoio governamental, a demanda de passageiros deve cair no Brasil, além de aumentar os custos de produção. A conclusão é de um estudo de Sergey Paltsev, do MIT (Massachusetts Institute of Technology, ou, Instituto de Tecnologia de Massachusetts), apresentado na semana passada em evento da IATA (Associação Internacional do Transporte Aéreo), em Santiago (Chile), do qual o UOL participou.

O Brasil deverá ter um crescimento 8% menor na demanda de passageiros em 2050 se não tiver políticas públicas que estimulem a produção do combustível sustentável de aviação, segundo dados preliminares do estudo, que foi encomendado pela Airbus e pela Latam. Mesmo com o potencial do Brasil na produção do SAF, sem atuação favorável do governo, encher o tanque dos aviões deverá, praticamente, dobrar naquele ano.

Hoje, o preço de uma passagem de avião no Brasil é composto entre 40% e 50% apenas de custos com combustível. Aumentando o seu valor, o impacto no preço final aos consumidores é direto, afastando os passageiros de viagens aéreas.

O estudo aponta que os custos de produção do combustível tradicional atualmente giram em torno de US$ 0,70 (R$ 3,67 por litro). Ao mesmo tempo, a produção do biocombustível no Brasil pode chegar a algo entre US$ 0,90 (R$ 4,72) e US$ 1,60 (R$ 8,39), aponta a pesquisa preliminarmente.

Por esse motivo há a importância da existência de políticas públicas para criar condições economicamente viáveis para a descarbonização na região, diz o autor do estudo. Ainda mais para viabilizar uma rede robusta e em larga escala de fornecimento de matérias-primas e de distribuição do combustível que não sejam tão poluentes e permitam manter a conectividade e os preços competitivos no setor.

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Larga escala deve diminuir impactos negativos

Proálcool: Programa foi um sucesso e mudou a matriz energética dos carros no país
Proálcool: Programa foi um sucesso e mudou a matriz energética dos carros no país Imagem: Divulgação

Os custos da descarbonização devem diminuir com a adoção de medidas em larga escala. Já foi assim no Brasil com o Proálcool.

O programa foi criado na década de 1970 pelo governo brasileiro para ampliar a produção e adotar um combustível alternativo até então, o etanol, frente às crises mundiais do petróleo. À época, foram criados incentivos fiscais, tanto para produtores do etanol quanto para as indústrias automobilísticas desenvolverem carros adaptados para o combustível.

O programa provou ser um sucesso, sendo, praticamente, inconcebível não encontrar bombas de etanol junto às de gasolina em postos de combustível pelo país hoje. Ao mesmo tempo, a quase totalidade dos carros no país podem circular com o etanol, principalmente pela adoção de motores flex.

Mas a diminuição de custos só foi possível com o apoio governamental e o uso em larga escala do etanol, garantindo sua competitividade frente a outros combustíveis.

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O que o setor tem em mente?

O setor aéreo vem adotando uma série de medidas com o objetivo diminuir seus índices de poluição e chegar ao desejado zero líquido. Todas elas, em conjunto, devem diminuir o impacto financeiro da descarbonização.

Além da adoção do SAF, se destacam as seguintes iniciativas:

Menos plásticos: Materiais de uso único, como plásticos descartáveis, aumentam indiretamente as emissões de carbono na atmosfera. Ainda mais por esse tipo de item ser derivado do petróleo. Em seu lugar, estão sendo usados talheres de madeira, embalagens de refeição com papel impermeável, entre outros.

Avião da Latam Airlines: Empresa tem investido em renovação da frota para diminuir a emissão de poluentes
Avião da Latam Airlines: Empresa tem investido em renovação da frota para diminuir a emissão de poluentes Imagem: Divulgação.

Renovação da frota: Usar aviões novos significa menos poluição. Isso se deve ao fato de que aeronaves novas possuem uma melhor eficiência energética e motores com menor consumo de combustível. Em alguns casos, a economia chega a 10%, o que pode parecer pouco, mas estamos falando de uma indústria na escala de milhões de pessoas transportadas diariamente.

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Melhora das rotas: Uma forma de voar mais inteligente permite gastar menos combustível, já que os aviões podem ficar menos tempo no ar. A Força Aérea Brasileira, responsável pelo controle do espaço aéreo nacional, lidera o projeto Eficiência de Rotas, voltado para melhoria dos trajetos dos aviões, buscando garantir a segurança, melhorar o tempo de voo e diminuir a queima de combustível das aeronaves.

Usos de dados de voo em tempo real: No Brasil, um sistema de rastreamento de voos adotado pela Azul deverá reduzir as emissões de carbono cerca de 500 toneladas ao ano. Chamado de Sita eWAS Dispatch, ele monitora em tempo real as rotas, sugerindo alterações nos trajetos para evitar trechos com formações meteorológicas desfavoráveis, como tempestades, que acabam fazendo o avião consumir mais combustível para conseguir ultrapassá-las.

Uso de veículos elétricos: Em solo, o uso de veículos elétricos também vem sendo adotado pelas aéreas. São carros de transporte de bagagem, refeições ou passageiros, que usam a matriz energética elétrica, que é renovável. Uma iniciativa do gênero promovida em voos da Latam no aeroporto de Confins (MG) tem diminuído em 114 toneladas as emissões de gás carbônico ao ano. Unidades auxiliares que fornecem energia para os aviões, comumente movidas a diesel, também vêm sendo trocadas por sistemas ligados na rede elétrica dos próprios aeroportos, evitando a queima de combustível.

Gerenciamento inteligente nos aeroportos: Não adianta o avião ficar o menor tempo possível em voo se, ao chegar no aeroporto, terá de ficar vários minutos esperando com os motores ligados até ter autorização para desembarcar os passageiros. Muitas vezes, em aeroportos de grande movimentação, é comum que uma aeronave também tenha de ficar esperando longos minutos até poder decolar. Nesse tempo, os motores estão sempre ligados, queimando combustível. Um exemplo de como essa organização pode ser prejudicial é um voo da ponte aérea Rio de Janeiro—São Paulo, que dura cerca de uma hora, mas há momentos em que os aviões chegam a esperar 20 minutos até conseguirem decolar.

Projeto de turboélice da Embraer, TPNG buscou integrar novas tecnologias de propulsão. Projeto está suspenso hoje
Projeto de turboélice da Embraer, TPNG buscou integrar novas tecnologias de propulsão. Projeto está suspenso hoje Imagem: Divulgação/Embraer

Novas formas de propulsão: Fabricantes buscam novas formas de gerar propulsão para as aeronaves. É o caso de motores elétricos ou movidos a hidrogênio, que ainda estão em fases iniciais de desenvolvimento. A adoção de eVTOLs, conhecidos como carros ou táxis voadores, também deve diminuir a emissão de poluentes indiretamente. Ao fazer trajetos mais rápidos aos aeroportos, essas aeronaves elétricas reduzem a queima de combustível fóssil nos carros, prometendo contribuir, mesmo que em menor grau, para a descarbonização do setor.

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Compensação ambiental: Algumas empresas oferecem programas de compensação da poluição gerada no voo com medidas que buscam capturar carbono da atmosfera. É o caso da Gol, com o programa Meu Voo Compensa, onde, ao comprar um bilhete, o passageiro pode contribuir com um valor extra que é destinado a um projeto ambiental para neutralizar as emissões. A Latam também tem uma iniciativa do gênero, buscando a preservação de biodiversidade em áreas na Colômbia e no Brasil para recapturar carbono da atmosfera.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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