Comércio de milhas aéreas causa dor de cabeça a clientes durante a pandemia
Programas de fidelidade e o comércio de milhas
Programas de fidelidade são estruturados por empresas para recompensar seus clientes com benefícios e, assim, incentivá-los a comprar mais, a não procurar a concorrência.
Os mais populares são oferecidos pelas companhias aéreas. Os passageiros acumulam créditos, chamados de milhas, toda vez que viajam por determinada empresa ou ao adquirirem produtos e serviços de lojas parceiras.
Nos últimos anos, um mercado cresceu vertiginosamente no Brasil: a comercialização das milhas aéreas.
Funciona assim: um cliente tem milhas acumuladas. Caso não pretenda ou não tenha tempo de utilizá-las, já que há prazo para isso, vende-as para uma agência virtual. Esta agência, por sua vez, utiliza estes créditos para emitir passagens aéreas e comercializá-las, por um preço menor, para outros clientes não necessariamente associados a algum programa de fidelidade. Aparentemente, um bom negócio para todo mundo.
Só que este é um mercado ainda sem regulamentação no Brasil. De um lado, as agências se amparam no fato de não haver nenhuma lei que proíba a negociação das milhas e no entendimento de que o consumidor é o proprietário destes pontos e tem o direito de decidir o que fará com eles. Do outro lado, contratos dos programas de milhagem normalmente têm uma cláusula que não permite a venda destes créditos, considerando-os pessoais e intransferíveis, sob pena de exclusão do programa dos clientes que recorrerem a tal prática.
O impacto com a pandemia da Covid-19 e como os clientes estão sendo afetados
O turismo é um dos segmentos mais afetados com a pandemia do coronavírus. O estudo da FGV Projetos, "Impacto Econômico da covid-19 e Propostas para o Turismo Brasileiro", divulgado em abril, já previa uma retração de quase 40% no faturamento, em comparação ao ano passado, considerando que a interrupção das atividades durasse até o final de maio. Empresas de compra e venda de milhas não sairiam ilesas e, por consequência, há inúmeros relatos de consumidores prejudicados.
Em nossa página no Facebook, formos procurados por um destes clientes, o engenheiro químico Elson Lorenzoni.
No dia 13 de março, Lorenzoni recebeu uma cotação da Hot Milhas. Poderia vender suas milhas e escolher receber o valor correspondente entre 1 dia útil até 30 dias corridos. Quanto mais tempo decidisse aguardar, maior o montante que iria receber. No mesmo dia, ele selecionou a proposta de seu interesse e recebeu um e-mail confirmando a negociação. O pagamento ficou agendado para ocorrer até às 21 horas do dia 13/04/2020.
Um dia antes da data prometida, a Hot Milhas enviou uma mensagem informando que fatos novos os obrigavam a estabelecer um novo prazo para o pagamento. Entre os fatores elencados, explicaram que: "A Hot Milhas, ao comprar as suas milhas/pontos, emite passagens para outros clientes. É com o recurso obtido pela emissão dessas passagens que pagamos a você pela venda das suas milhas/pontos. Entretanto, no cenário atual, a maior parte desses recursos não será recebida pela Hot Milhas no prazo previsto, pois a grande maioria dos clientes que comprou passagens desistiu da viagem ou teve seus voos cancelados pelas companhias aéreas".
Ora, em que momento se estabeleceu que o consumidor que está vendendo suas milhas só recebe o valor equivalente a partir dos recursos obtidos com a emissão das passagens para outros clientes? Esta, aliás, é a premissa do golpe de pirâmide financeira.
Seus pontos foram usados na compra de passagens, passagens estas que geraram lucro e caixa para a Hot Milhas. O cliente que cedeu suas milhas não pode ser prejudicado por nenhuma circunstância econômica.
Pois bem, na sequência da mensagem, a Hot Milhas propõe pagar o mesmo valor acordado anteriormente, mas parcelado em seis pagamentos mensais e sem nenhum reajuste. O cliente havia decidido esperar 30 dias exatamente para obter um valor maior do que o que lhe seria oferecido se optasse pelo pagamento imediato e, agora, teria de esperar seis meses para receber exatamente o mesmo valor.
Proposta de renegociação pressupõe a anuência de ambas as partes. Entendendo que a alternativa não lhe era favorável, o consumidor respondeu que não concordava com o parcelamento e explicou que já havia assumido compromissos que não podiam ser renegociados. Em resposta, a Hot Milhas informou que não havia proposta melhor para oferecer naquele momento.
O engenheiro aguardou até o dia 15/04/2020 (dois dias após a data originalmente negociada) e foi até flexível. Disse que poderia aceitar um parcelamento, desde que em um número menor de prestações, e com acréscimo de 10% de juros.
A Hot Milhas respondeu que não aceitava os termos da contraproposta.
Bem, se a Hot Milhas tem o direito de não aceitar os termos do cliente, o cliente também não é obrigado a aceitar as condições da empresa, devendo prevalecer o que fora acordado originalmente, certo?
Mas o martírio do Elson estava só começando. Foram várias ligações sem que o problema fosse resolvido. O engenheiro, então, notou que vários outros clientes estavam passando pela mesma dificuldade. Pesquisou no ReclameAQUI e notou que até os consumidores que haviam aceitado o pagamento parcelado e sem juros não estavam recebendo o pagamento.
Já quase sem esperanças de que receberia o valor, Lorenzoni teve um momento de sorte. Uma das passagens emitidas com suas milhas havia sido devolvida e os pontos foram creditados novamente na conta dele. Ainda assim, representava uma ínfima parte do total que ele havia cedido. Para que estas agências concretizem as negociações, os clientes precisam fornecer suas senhas de acesso aos programas de fidelidade. O engenheiro, então, trocou sua senha para que a Hot Milhas não mais conseguisse acessar sua conta. "De uma forma quase surreal, passaram então a me telefonar e enviar e-mails cobrando minha nova senha. Informei a eles que só enviaria a senha novamente após o pagamento que já devia ter sido efetuado, conforme nosso acordo. A Hot Milhas fez ainda mais uma tentativa de obter minha nova senha em 26/05/20, alegando que os dados de minha conta para depósito não correspondiam ao titular da conta LATAM Pass e por isso não haviam feito o depósito, o que não é verdade. A conta tinha o mesmo CPF da conta LATAM pass, que é o meu CPF, mesmo assim conferi os dados no site Hot Milhas, verificando que está tudo correto, e que não passava de uma tentativa para usarem os pontos que haviam sido devolvidos. Recebi ainda vários telefonemas cobrando a senha e afirmei que a senha só seria enviada após o pagamento do acordado. Após mais algumas tentativas de me cobrarem a senha pararam de me ligar e situação está na mesma até hoje".
Claro que o cliente quer receber o valor que é seu por direito, mas acima de tudo, o que o revolta é que eles mantiveram propagandas na TV e internet e continuam a operar normalmente: "tive um amigo que fez uma venda posteriormente a mim e que também não recebeu. Espero estar contribuindo para que outras pessoas não caiam nessa armadilha que eu e meu amigo caímos".
Uma pesquisa no ReclameAQUI evidencia o tamanho do problema.
Só esta semana, localizamos centenas de reclamações envolvendo algumas das principais empresas do setor: Hot Milhas, 123Milhas e MaxMilhas. São clientes que, como o Elson, venderam suas milhas e não receberam o valor na data prometida ou que compraram passagens que, por conta da pandemia, foram canceladas e não conseguem o reembolso.
Conversamos com a farmacêutica, P.P, que, por medo de represálias que adiem ainda mais o seu reembolso, preferiu não se identificar. P.P realizaria, depois de um ano de planejamento e economia, o sonho de conhecer Orlando. Sua viagem estava marcada para abril e o projeto precisou ser adiado por conta da pandemia. O custo com a hospedagem, reservada pelo site Expedia, foi reembolsado tranquilamente. Já a negociação com a 123 Milhas, segundo ela, não avançou bem. "Primeiro, eles não deram a opção de remarcar, só de reembolso em 30 dias úteis. Depois de uns dias, mandaram um e-mail falando que eu poderia escolher entre remarcar ou ter o reembolso, só que a devolução não seria mais no prazo prometido, mas até o dia 31/12".
Dificuldade para entrar em contato
Muitos reclamam que sequer conseguem entrar em contato com as empresas.
A página da Hot Milhas no Facebook, em 21 de março, publicou que em cumprimento ao decreto da prefeitura de Belo Horizonte, que determina a suspensão temporária da realização das atividades de teleatendimento e das centrais de telemarketing, para enfrentamento da situação de emergência em saúde pública causada pelo coronavírus, a Central de Atendimento ao Cliente deixaria de operar temporariamente. Nesta postagem, até o momento em que escrevo este texto, já há mais de 900 comentários, em sua imensa maioria de clientes indignados com a falta de pagamento. Encontramos, também, uma página intitulada "Hotmilhas É GOLPE", que reúne alguns consumidores que se sentem lesados pela empresa.
A 123Milhas esclareceu, em 23 de março, que, temporariamente, a página no Facebook seria o canal exclusivo para atendimento via redes sociais. E, em meio a milhares de comentários, há muitos consumidores revoltados com a falta de respaldo e o prejuízo financeiro.
Localizamos inúmeras reclamações, também, na página da MaxMilhas. Muitas relacionadas a dificuldade de contato, quase sempre respondidas com o esclarecimento de que estão recebendo um número gigantesco de solicitações em um curto espaço de tempo e que estão concentrando todos os esforços possíveis para responder o quanto antes.
O que dizem as empresas
Procuramos as empresas citadas e as questionamos sobre este cenário em que milhares de consumidores, em sua maioria já decepcionados com o cancelamento de seus sonhos e projetos, ainda se sentem sem respaldo. As respostas estão publicadas na íntegra:
Hot Milhas
"A Hot Milhas é uma empresa com mais de 10 anos de história e que sempre teve em sua essência a parceria com o seu público-alvo. Ao longo de todos esses anos, já realizamos a compra de bilhões de milhas em todo o país. O cumprimento do prazo de pagamento de todas as propostas realizadas sempre foi levado a sério por todos nós, em respeito a todos os nossos parceiros. Entretanto, temos acompanhado os impactos provocados pela pandemia do novo coronavírus na economia mundial e, certamente, o setor do turismo é um dos que mais tem sofrido com isso. Diante deste cenário, que foge totalmente do nosso controle, nos vimos obrigados a negociar com alguns de nossos parceiros e, com isso, oferecer uma nova forma de pagamento. Fizemos isso para garantir que todos os nossos compromissos não deixassem de ser cumpridos e pudéssemos garantir o controle de nossas finanças, uma vez que o período de duração desta crise econômica é tão incerto. Gostaríamos de reforçar que esta renegociação foi realizada com uma parcela mínima de nossos parceiros, apenas no início de abril. Desde então, nossos processos de negociação e pagamento seguem sendo feitos da forma habitual, conforme consta em nosso termo de serviço. Ou seja, todos estão recebendo o valor acordado de forma integral e em dia".
O engenheiro Elson Lorenzoni continua aguardando pelo pagamento que havia sido prometido para o dia 13 de Abril.
123Milhas
"Sobre o cancelamento das passagens solicitado pelos nossos clientes, informamos que sempre prestamos total apoio e o realizamos o mais rápido possível. Toda a nossa equipe trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana, para atender a todos os nossos clientes impactados pela pandemia. Reforçamos o nosso compromisso e não estamos medindo esforços para que todas as solicitações de reembolso sejam atendidas o mais breve possível. Cabe informar que os pedidos de reembolso de cancelamentos provenientes da Covid-19, de acordo com a Medida Provisória 925/2020, editada pelo Governo Federal e que trouxe medidas emergenciais e vitais para a aviação civil brasileira, podem ocorrer em um prazo de até 12 meses para viagens compradas até 31 de dezembro de 2020 e canceladas em razão da referida pandemia".
A farmacêutica P.P. aguarda o pagamento até o final do ano e só finalizará suas manifestações no Procon e no ReclameAQUI quando for integralmente ressarcida.
MaxMilhas
"A MaxMilhas é uma plataforma de pesquisa, comparação e intermediação de passagens aéreas. Estamos inseridos no setor de turismo e viagens, que foi duramente impactado pela Covid-19. As companhias aéreas reduziram 90% dos seus voos e mais de 85% das viagens de turismo no Brasil foram canceladas entre março e abril. Esse cenário se refletiu intensamente em nossas operações, principalmente pelo volume sem precedentes de cancelamentos e remarcações de passagens. Tanto os nossos canais de atendimento quanto as companhias aéreas estão sobrecarregados desde o início da pandemia. Sempre prezamos pelo nosso compromisso com a transparência e temos concentrado todos os nossos esforços no apoio aos clientes. Aceleramos a automatização dos processos de cancelamento e remarcação pelo site e fazemos o atendimento às solicitações por ordem de data dos voos, para dar mais agilidade ao atendimento. Ressaltamos que, para realizar o cancelamento e a remarcação das passagens, seguimos as regras de cada companhia, as orientações da Anac e as condições da Medida Provisória nº 925/2020, que preveem o reembolso em dinheiro em 12 meses. Esclarecemos que, mesmo diante desse cenário extremo, os pagamentos pela venda de milhas em nossa plataforma estão sendo feitos normalmente, no prazo previsto. Essa condição tem sido diferente somente nos casos de voos que tiveram pedidos de cancelamento por parte do passageiro ou alteração de rota pela companhia aérea; e de voos que já passaram, mas devido à alta demanda, ainda não tiveram o embarque do passageiro verificado. Nesses casos, o pagamento fica suspenso até que esse procedimento seja realizado, já que o passageiro pode solicitar o cancelamento da viagem mesmo após o no-show. Ressaltamos que todos os clientes que venderam suas milhas na MaxMilhas recebem seu pagamento ou têm suas milhas devolvidas, caso o voo seja cancelado. Sabemos que este momento difícil vai passar e seguimos prontos para continuar tornando possíveis novas viagens e experiências".
Orientações
Caro leitor, conforme já exposto, não há regulamentação para o comércio de milhas, o que pode causar a percepção de ser "terra de ninguém". Não é bem assim.
Por mais que seja uma condição estabelecida por estas empresas, é muito delicado fornecer a senha de acesso ao seu programa de fidelidade. No seu cadastro, constam dados pessoais que podem ser vazados, ainda que por engano. Avalie você mesmo, vale a pena correr o risco? Amanhã ou depois, se os seus dados forem fraudados e utilizados em compras que você não autorizou, lembre-se que, talvez, funcionários destas agências estejam envolvidos.
Sem contar que você dá liberdade para que a agência negocie, inadvertidamente, mais milhas do que o que você autorizou.
Pesquise atentamente as reclamações existentes nos sites especializados, como o ReclameAQUI. Assim, você poderá avaliar melhor quais os riscos da sua negociação. Mas lembre-se: se você pesquisar a empresa e não encontrar nenhuma reclamação, fique atento, pois, em um mercado como este, é impossível uma grande empresa não ter nenhuma avaliação negativa.
Faça cotações, mas não se deixe levar apenas pelo melhor valor. Consulte a idoneidade da empresa.
Certifique-se de que toda sua negociação seja sempre feita por documento escrito e não apenas por telefone.
E, por fim, caso exista o descumprimento do que foi acordado por parte da empresa, não hesite em registrar sua reclamação no ReclameAQUI, consumidor.gov, PROCON e, se for o caso e assim desejar, vá até um Juizado Especial Cível e socorra-se do judiciário.
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