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Sites vendem tênis "de marca" com preço mais barato que o original

S. Hermann & F.Richter/Pixabay
Imagem: S. Hermann & F.Richter/Pixabay

27/08/2020 05h00

A comercialização de produtos falsificados alimenta o crime organizado, aumenta o índice de desemprego, viola direitos autorais, promove concorrência desleal e causa danos ao erário. E não é mais preciso ir a um centro de compras, como a Rua 25 de Março em São Paulo. A pirataria, agora, está a um clique e, no que se refere a fabricação de tênis, tem seu polo no interior de Minas Gerais.

Nova Serrana/MG - Polo de fabricação de tênis falsificados

O simpático município de Nova Serrana, no interior de Minas Gerais, que tem o trabalho como bandeira evidenciado na letra de seu hino, tornou-se o principal polo de fabricação de calçados de origem ilegal. "Ao contrário de produtos como óculos e relógios, que predominantemente são importados, no caso de tênis, hoje, há no Brasil uma grande produção local. Polos como Nova Serrana e Franca passaram a se tornar principais fontes de produtos falsificados no Brasil. Esses produtos abastecem, atualmente, grande parte dos locais de venda de produtos contrafeitos, como Shopping 25 de Março e região central de São Paulo. Cada vez mais, esses produtos vêm sendo comercializados, também, pela Internet. Alguns sites os apresentam como réplicas perfeitas ou primeira linha, enquanto outros os vendem como se fossem originais, em promoções ou queimas de estoque", contou-nos o advogado Elisson Garé, do escritório Garé Advogados, fundado em 1990 e especializado em Propriedade Intelectual. O escritório concentra suas atividades em Brand Protection (proteção de marca), com destaque no combate à falsificação de marcas, patentes, desenhos industriais, concorrência desleal e violação de direitos autorais, inclusive no âmbito do direito digital.

Sites vendem réplicas não autorizadas no atacado e no varejo

Chamo a atenção para o processo público, número 1075018-06.2020.8.26.0100, 2ª vara empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, movido por renomadas marcas de calçados contra empresários da região de Nova Serrana que estão à frente de dois websites: www.rickshoes.com.br e www.mcshoes.com.br

Na petição inicial, os advogados Rodrigo Gianni Carney e Elisson Garé enaltecem exatamente os aspectos técnicos citados por profissionais da área da saúde que entrevistamos para esta reportagem. Evidenciam que a Nike, por exemplo, se tornou mundialmente conhecida em razão da inovação tecnológica e da excelência e padrão de qualidade dos artigos que produz, destinados a práticas esportivas de alta performance. Acrescentam que os produtos por ela desenvolvidos se destacam pelo design inovador, tecnologia de ponta, durabilidade e conforto e que esse reconhecimento é resultante de elevados investimentos em pesquisas, desenvolvimento de novos materiais e aprimoramento de técnicas de produção.

Os advogados, na mesma petição, alertam para dois fatores que evidenciam o crime: o preço praticado, inviável para o modelo original, e, de certa forma, uma admissão de culpa, já que, ainda que de maneira discreta, há indicação, nos sites, de que os produtos são réplicas. (obviamente não autorizadas).

Laudo comprova a baixa qualidade dos calçados comercializados

Foi anexada à petição, uma análise de autenticidade de calçados comprados no site da loja MC SHOES (https://mcshoes.com.br/), localizada em Nova Serrana/MG. Além de divergências entre as informações apresentadas na caixa e na etiqueta interna do calçado e de condições inapropriadas de armazenamento, o laudo apresenta gritantes diferenças na comparação entre os produtos falsificados e os originais.

Produtos falsificados - divergência etiqueta e caixa - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Há falhas no acabamento e formato irregular fora dos padrões originais, demonstrando a baixa qualidade dos produtos. A sola rígida da cópia do Nike Shox pode causar sérias lesões, como nos atestaram alguns especialistas.

produtos falsificados - original vs réplica - Reprodução - Reprodução
Laudo aponta diferenças entre os produtos falsos e os originais
Imagem: Reprodução

Eu comprei um tênis no site MC Shoes para esta reportagem e, ao recebê-lo, sem a nota fiscal, enviei e-mail para a loja perguntando se o produto era original. Não obtive retorno até o fechamento desta matéria.
Nas redes sociais, não medem esforços para expandirem os negócios e atingirem mais consumidores.
No perfil @rickshoesatacado, ativo no Instagram e com quase 10 mil seguidores, vários sorteios, com prêmios como Iphone 11, são divulgados. Entre as regras, sempre há a obrigatoriedade de seguir outros usuários e marcar amigos, o que faz com que mais pessoas conheçam a loja. No último sorteio, havia a necessidade de seguir mais de 20 perfis. Enviei mensagem perguntando se estes sorteios são autorizados pelo Ministério da Fazenda, o que é obrigatório, mas também não obtive resposta até o momento.

Danos permanentes à sua saúde

Se estas informações ainda não o convenceram de que não vale a pena comprar aquele tênis "de marca" por um preço bem menor do que o original, esteja consciente que esta "economia" pode causar danos permanentes à sua saúde.

"Uma prática comum, voltada exclusivamente para status e estética, é a fabricação de falsificações, cópias e réplicas de calçados famosos por seus desempenhos, contudo, o uso desse tipo de peça pode não só prejudicar o desempenho na prática esportiva, como também trazer malefícios a saúde. O uso inadequado de um calçado pode acarretar sérias consequências posturais, bem como o aparecimento de dores que, antes, não existiam. Isso ocorre porque estes produtos são fabricados sem nenhum controle de qualidade e não se pautam em pesquisas de desenvolvimento", alertou Nicola Oricchio, fisioterapeuta da Caldense, clube que disputa a primeira divisão do campeonato mineiro de futebol.

Legalmente, uma réplica pode ser comercializada desde que sua produção tenha sido autorizada pela fabricante do produto original. Marcas famosas e consolidadas, porém, jamais compactuariam com a venda de cópias de peças que, quando originais, passam por rigorosos testes e estudos.

"Os calçados são a base para a prática de atividades físicas e, portanto, é de extrema importância a qualidade dos materiais utilizados em seu desenvolvimento. Para cada esporte, existe um calçado específico; há alguns tênis, com bom amortecimento, que podem servir para a prática de esportes em geral e até alguns com a função de corrigir a biomecânica do movimento. É possível, portanto, que o calçado valorize e otimize o desempenho do atleta", acrescentou Nicola.

Pode-se imaginar, erroneamente, que os riscos estejam restritos aos exercícios de corrida. Marcello Rubens Orlando, personal trainer que trabalha com reabilitação funcional, explica os perigos durante um exercício de agachamento, por exemplo. "Ao subir, na fase concêntrica, a força exercida na flexão plantar do tornozelo é muito grande; é nessa hora que o tênis falso irá deixá-lo na mão e não vai auxiliar no equilíbrio dos pés". O educador físico ressaltou que todo desequilíbrio gera outro para compensar. Assim, a utilização do calçado inadequado pode ser o ponto de partida para uma lesão nos joelhos, quadril e em todo o nosso corpo. "Definitivamente, não vale a pena comprar um tênis falsificado. A economia feita com a diferença no preço em relação ao original poderá causar uma lesão com efeitos para toda a vida", concluiu.

O médico ortopedista e traumatologista do hospital Albert Einstein, Frank Beretta Marcondes, toca em uma ferida: "as pessoas que, erroneamente, alimentam este comércio ilegal sabem, ou deveriam saber, quais são os riscos e os prejuízos efetivos que o uso de produtos falsificados, sem a mínima qualidade exigida por lei, pode trazer". E faz um recorte em relação ao cenário nacional: "a comercialização ilegal de tênis falsificados é um grave problema mundial, mas no Brasil, um dos países que mais comercializam esses produtos no mundo, tornou-se praticamente uma pandemia".

O Dr. Beretta lembra do ditado popular que diz que o barato pode sair caro para reforçar que a fabricação de um tênis pelas grandes marcas nacionais e internacionais envolve uma gama de pesquisas e investimentos em tecnologias tão significativa, que o acessório é praticamente customizado para cada indivíduo. E deixa um alerta importante para atletas e não atletas: "a curto prazo, a primeira coisa que um atleta sofrerá é a queda na performance; a médio e longo prazo, o uso inadequado deste tipo de calçado trará severos riscos e graves lesões ortopédicas, como lesões musculares, ósseas, hérnias de disco na coluna, artrose (desgaste de uma articulação), lesões meniscais e ligamentares nos joelhos e até fraturas, principalmente nas atividades consideradas de impacto. Já a utilização de tênis de má qualidade por pessoas comuns, mesmo que não os utilizem para prática esportiva, poderá trazer dores articulares frequentes, principalmente na região do tornozelo, joelho quadris e coluna. Além disso, poderá intensificar outros problemas já existentes", concluiu Dr. Frank Beretta que comentou ser frequente, em seu consultório, se deparar com queixas ortopédicas relacionadas ao uso inadequado de tênis, seja por utilização de um produto de má qualidade ou pela escolha equivocada para o objetivo desejado.

Mercado lucrativo para os criminosos

Estatísticas demonstram que, apesar dos riscos médicos, o mercado é lucrativo para os criminosos. Dados levantados pelo Ibope e divulgados pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) revelam que, apenas no que se refere à falsificação de tênis, no período de 12 meses encerrados em maio de 2015, 23% dos produtos adquiridos por brasileiros eram "piratas", o que significa que aproximadamente R$ 1,6 bilhão deixou de ser movimentado na economia formal e que as companhias deixaram de empregar 145 mil pessoas - que seria o número necessário para a fabricação de 19 milhões de pares de tênis em um ano. Acresça-se a isso, ainda, a receita tributária que deixou de ser arrecada. Estas informações foram consideradas pela ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, na relatoria do recurso especial nº 1.535.668-SP (2015/0128425-3).

Como combater a falsificação?

"Tanto a iniciativa pública como a privada já adotaram uma série de medidas nos locais. Diversas apreensões foram realizadas em fábricas, em rodovias que ligam Nova Serrana a outras cidades e em lojas de representação local. Apesar dos esforços conjuntos, o local permanece crítico em relação à fabricação de produtos contrafeitos. No Brasil, é essencial ao combate à contrafação ações que envolvam esforços conjuntos da iniciativa privada com autoridades públicas. Muitas das últimas grandes operações realizadas no país contaram com atuação incisiva de órgãos como Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal e Delegacias Especializadas, com suporte jurídico das marcas prejudicadas. O Poder Judiciário também tem tido importante papel no combate à contrafação, mediante ordens de busca e apreensão e condenação com indenização por danos materiais e morais", opina o advogado Elisson Garé.

Sem dúvida alguma, não comprar é a melhor maneira de combater este crime. É a lei da oferta e da procura. Tem gente vendendo porque tem gente comprando.

Mas há outras ações que podem ter efeitos positivos, principalmente em relação às vendas realizadas pela internet.

  • Empresas de meios de pagamento

As empresas prejudicadas precisam monitorar as redes sociais em busca dos sites e lojas virtuais; identificar quem são as intermediadoras de pagamento e notificá-las para que cessem o contrato com estabelecimentos físicos ou virtuais que vendem produtos falsificados e réplicas não autorizadas, sob pena de estarem compactuando com o crime de contrafação;

Do mesmo modo, notificar os bancos que emitem boletos bancários para que também encerrem os contratos; sem meios de pagamentos, sites e lojas virtuais tendem a perder faturamento, não lhes deixando alternativa a não ser partir para o modelo presencial tradicional, o que facilitará a identificação dos criminosos e proporcionará aos órgãos de inteligência o mapeamento dos locais para realizar ações de busca e apreensão.

  • Ações Judiciais

Identificar os envolvidos e promover demandas judiciais, como a que o escritório Garé Advogados propôs, requerendo a interrupção das vendas e com pedido de indenização, tem efeitos muito positivos.

Os responsáveis pelos sites, em sua maioria, são laranjas. É importante que se promovam ações na esfera criminal para que se iniba a "contratação" destes indivíduos que emprestam seus dados pessoais para os verdadeiros líderes das quadrilhas.

  • Reciclagem

Produtos apreendidos são reciclados e vários destinos podem ser dados aos materiais. É preciso dar publicidade a estas ações e mostrar, claramente, qual é o destino dos itens apreendidos, a quem foram destinados e quais serão os benefícios para a sociedade.

Comprei um produto falsificado. O que devo fazer?

Se está ciente de que o produto é falsificado, você não só não deve comprar, como deve denunciar à delegacia do consumidor pois são produtos que não atendem aos necessários padrões de qualidade e são potencialmente lesivos aos consumidores

Caso tenha imaginado que o produto era realmente original, você foi enganado e isso é estelionato. Se comprou pela Internet, você poderá requerer a devolução em um prazo de sete dias e até processar o vendedor, o que eu recomendo fortemente. E fica a lição: desconfie de preços muito abaixo do mercado. Primeiro, porque há o sério risco de que você nem receba a mercadoria. Há vários sites fraudulentos que sequer mantém itens em estoque. Depois, porque, caso receba, a probabilidade de não ser um produto original é muito grande. Pirataria é crime, não incentive esta prática.