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Bolsa dos EUA passa a vender cotas de água; isso pode encarecer o produto?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

17/12/2020 04h00

Desde a semana passada, cotas de águas passaram a ser comercializadas na Bolsa de Valores dos EUA, seguindo o que já ocorre com o petróleo. Isso pode deixar a água mais cara? Quais os aspectos positivos e negativos?

Alguns especialistas em gestão de recursos hídricos do Brasil temem a cópia desse modelo por aqui e criticam a negociação de um recurso tão sensível. Mas profissionais do mercado financeiro entendem esse tipo de contrato como uma forma de proteção de risco contra aumento de preço ou falta de água.

De onde é essa água?

O índice rastreia a média de preços da água apenas na Califórnia. Para o cálculo, são consideradas as cinco maiores regiões com a presença de água na Califórnia —uma superficial e quatro bacias subterrâneas. O valor do papel é divulgado uma vez por semana. Na conta, são excluídos custos de transporte e possíveis perdas.

Contratos desde a semana passada

O índice Nasdaq Veles California Water (NQH2O) foi criado em 2018 pelas empresas Veles Water e WestWater Research em parceria com a Nasdaq. Mas os contratos são recentes e só passaram a ser vendidos na semana passada, após meses de análise. Neles, é levado em conta o valor estipulado pelo índice no momento de fechar uma compra.

Como é feito o negócio?

O índice é calculado por dez acres-pé, que correspondem a cerca de 1,2 milhão de litros - suficiente para encher duas piscinas olímpicas. As negociações são para situações futuras, ou seja, para ter a garantia do produto em questão de meses e até anos. Hoje, o índice é cotado em US$ 489,11 e, por isso, o contrato é negociado a US$ 4.890.

Veja um exemplo de cálculo: Em janeiro, uma fazendeira prevê uma época de seca e estima que vai precisar de 100 acres-pé de água para uso em junho. Na época, por exemplo, o índice está cotado em US$ 500 por acre-pé.

Prevendo aumento de preços, a fazendeira decide negociar dez contratos para junho —cobrindo a necessidade de água e evitando compra com a esperada do preço na época de seca. A compra custará US$ 50 mil.

Quando chega junho, o preço da água pelo índice poderia estar, por exemplo, em US$ 560 por acre-pé. A fazendeira nesse caso economizou na compra. E, se não usar toda a água, ainda pode vender o excedente e lucrar.

A água é propriedade privada?

Diferentemente do Brasil, nos EUA a água é propriedade de quem é dono da terra, e não é pertence a um governo, afirma Daniel José da Silva, professor do departamento de engenharia sanitária e ambiental da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Apesar disso, todas as negociações e vendas nos EUA são revisadas por uma agência do governo.

É possível comprar água a distância?

Na prática, a compra das cotas na Bolsa de Valores americana não permite que a água saia dos EUA e abasteça outros mercados. Segundo o trader de derivativos e CEO da Nox Bitcoin, João Paulo Oliveira, os custos de transporte não compensariam pelo valor do produto -como ocorre com o petróleo, que é levado para quilômetros de distância do ponto de prospecção.

Porém, o professor da UFSC observa que isso até pode ocorrer caso outras Bolsas de Valores passem também a negociar contratos futuros de água.

Preciso me preocupar?

Depende, já que não há consenso em relação a esse ponto. Para Silva, há possibilidade de colapso de recursos hídricos - caso se pense apenas no lucro e não na sustentabilidade do sistema.

"Não é legal para o consumidor ter um produto tão vital ao ser humano à disposição de especuladores. Não precisamos disso", declarou Silva.

O CEO da NOX Bitcoin declara que a venda de cotas de água na Bolsa não afeta "em absolutamente nada" o consumidor individual, já que esse tipo de contrato é feito para grandes indústrias ou fazendeiros que precisam de quantidade expressiva do recurso futuramente.

Segundo Oliveira, esse mecanismo serve como "proteção de risco" contra aumento de preço ou escassez de água. Além disso, a comercialização das cotas ocorre nos EUA.

"Esses contratos definem como a água vai ser entregue, e esse tipo de coisa é fundamental para quem trabalha com produção, para se proteger de variação de preço de mercado", observa o trader, que destaca a facilidade de planejar custos de produção.

Mas a água é ou não uma mercadoria?

Luiz Fernando Scheibe, professor aposentado do departamento de Geociências da UFSC, afirma que a água é reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como direito fundamental do ser humano desde 2010. E ressalta que o entendimento da água como mercadoria não é recente.

"O Brasil, ao comercializar toneladas de carne e soja com outros países, acaba indiretamente vendendo o líquido, utilizado para a produção desses produtos, chamada de 'água virtual'. Para 1 kg de carne de boi, são necessários 15 mil litros de água", disse.

Além disso, hoje mais da metade do mercado de água engarrafada no Brasil é controlado por grandes multinacionais como Nestlé, Coca-Cola e Danone, segundo ele.