O que diz acordo entre Bolsonaro e Congresso para evitar que Orçamento estoure
Cheio de problemas, o Orçamento do governo federal para 2021 levantou a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro ser indiciado por crime de responsabilidade fiscal, rumores sobre a perspectiva de novas baixas no Ministério da Economia e comparações com as "pedaladas" e a "contabilidade criativa" que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Ontem, governo e Congresso fecharam acordo para aprovar um projeto de lei que busca resolver o impasse antes da sanção presidencial, que precisa acontecer até quinta-feira (22).
Pela proposta, gastos emergenciais com saúde ligados ao combate à pandemia e os programas de redução de jornadas e salários para trabalhadores e de crédito subsidiado para as empresas serão retirados da meta fiscal.
Outra mudança relevante do projeto, segundo Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, é que ele abre a possibilidade para o Executivo contingenciar emendas do relator, um tipo de gasto não obrigatório que antes o governo não tinha autorização para cortar.
O que significam essas duas mudanças? E elas livram Bolsonaro do crime de responsabilidade e da possibilidade de impeachment? Entenda aqui.
Gastos com saúde, BEm e Pronampe fora da meta
A primeira mudança trazida pelo Projeto de Lei do Congresso Nacional nº 2 de 2021, cujo parecer foi publicado ontem, é retirar da meta de resultado primário gastos com saúde ligados ao combate à covid-19.
A meta de resultado primário é um limite estabelecido pelo próprio governo para a diferença entre suas receitas e despesas no período de um ano. Como desde 2014 os gastos públicos têm superado a arrecadação, essa meta atualmente é de déficit. Para 2021, o rombo nas contas públicas é estimado em R$ 247 bilhões.
Pela proposta, saem também da meta fiscal para este ano os gastos com o BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), programa que permite a redução de jornadas e salários e suspensão de contratos dos trabalhadores mediante complementação salarial pelo governo, e o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), que disponibiliza empréstimos para empresas a juros baixos.
Segundo o Ministério da Economia, o governo pretende destinar R$ 15 bilhões aos dois programas de ajuda às empresas, sendo R$ 10 bilhões para o BEm e R$ 5 bilhões ao Pronampe.
Em março, o Congresso já havia aprovado que os R$ 44 bilhões que serão destinados ao pagamento do auxílio emergencial este ano fiquem fora do teto de gastos e da meta de primário.
Além desse valor do auxílio, o portal Tesouro Transparente revela que há pelo menos outros R$ 41 bilhões em créditos extraordinários já aprovados para o combate à pandemia que não entram no teto de gastos, mas contam para o primário.
Ou seja, caso o PLN 2 seja aprovado, ficariam fora da meta de primário deste ano: os R$ 44 bilhões do auxílio, os R$ 15 bilhões do BEm e do Pronampe e mais um outro valor bilionário em gastos com saúde já aprovados e novos gastos que poderão vir a ser autorizados.
'Diminui a transparência'
"Acho a decisão de ampliar as despesas fora da meta errada", diz Salto, da IFI.
"A regra do jogo hoje é que o crédito extraordinário, pela característica que ele tem, pode ser editado quando há imprevisibilidade e urgência. Então ele é extrateto pela própria regra do teto lá de 2016", explica o economista.
Aprovada no governo Michel Temer (MDB), a regra do teto de gastos limita o crescimento das despesas de um ano à variação da inflação no ano anterior. Pela lei, créditos extraordinários emergenciais podem ficar de fora dessa regra.
"Agora, retirar do primário é muito ruim. É apenas uma questão contábil: você vai fazer o gasto e ele vai afetar a dívida pública. A única diferença é que, para fins de cumprimento da meta fiscal, você não vai contabilizar", afirma o diretor-executivo da IFI.
"Isso piora a transparência das contas públicas e não ajuda em nada. Você deveria mudar a meta de primário, sinalizando que há uma mudança no gasto previsto. Só que eles optaram por descontar da meta de primário, o que é bastante questionável", avalia.
"Vai ter agora dois indicadores: vamos ter que calcular o resultado primário para fins de cumprimento da meta e um resultado primário efetivo, considerando todos os valores descontados", diz Salto, acrescentando que isso aumenta a complexidade do acompanhamento das contas públicas, o que reduz a transparência.
Fonte ouvida pela BBC News Brasil que preferiu ter seu nome preservado avalia que a manobra é fruto do medo.
"A Dilma foi implicada por alterar a meta", lembra esse interlocutor, próximo às discussões no Congresso. "Só que aí eles fazem pior: tiram da meta."
Autorização para governo cortar despesas que antes não podia
A segunda mudança trazida pelo projeto de lei apresentado ontem altera dois parágrafos do artigo 62 da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).
O parágrafo 3º diz que o Executivo fica autorizado a cortar despesas discricionárias dele próprio para fins de cumprimento do teto de gastos. Despesas discricionárias são aquelas sobre as quais o governo tem algum poder de decisão, diferentemente das obrigatórias, que são definidas em lei e, por conta disso, totalmente engessadas.
Já o parágrafo 2º diz que as alterações orçamentárias estarão sujeitas ao teto.
"No meu entendimento, isso indica que o Executivo vai ter o poder de contingenciar as emendas do relator geral. Hoje ele não tem esse poder", avalia Salto, explicitando que essa é uma interpretação pessoal sua e não uma avaliação oficial da IFI.
Conforme o noticiário de ontem, pelo acordo firmado entre governo e Congresso, seriam mantidos R$ 16,5 bilhões em despesas com emendas parlamentares, de um total de R$ 26 bilhões desse tipo de gasto que foram criados pelo relator, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), por ocasião da primeira versão do projeto de lei do Orçamento.
Então, do gasto adicional criado por Bittar, seriam cortados já cerca de R$ 10 bilhões, que podem ser destinados para a recomposição do gasto obrigatório.
"A questão é que o corte de R$ 10 bilhões apenas não é suficiente para o cumprimento do teto de gastos", avalia Salto, da IFI. A instituição fiscal estima que, para cumprir o teto este ano, seria necessário cortar R$ 31,9 bilhões em despesas.
"Por isso minha interpretação é de que o PLN 2 vai além, a introdução do parágrafo 2º no artigo 62 vai permitir que, nos decretos de contingenciamento, o Executivo possa cortar tudo aquilo que estiver superando o teto. Então, se ele quiser cortar mais emendas do que os R$ 10 bilhões agora acordados, ele vai poder, porque o teto de gastos tem que ser cumprido."
Pela estimativa da IFI, seria necessário cortar a totalidade das emendas do relator (R$ 26 bilhões) e mais um tanto do gasto discricionário do próprio governo para chegar aos quase R$ 32 bilhões de ajuste necessário para cumprimento do teto este ano.
O gasto discricionário do governo inclui despesas como limpeza, segurança e contas básicas dos órgãos públicos como água e luz. O ajuste aqui é bastante delicado, pois essas despesas já estão no limite considerado mínimo para funcionamento do governo e cortar demais pode resultar em paralisação da máquina pública ("shutdown", na expressão em inglês).
O acordo resolve os problemas do Orçamento?
Segundo Salto, o corte de R$ 10 bilhões em emendas parlamentares é insuficiente para o cumprimento do teto de gastos.
Mas o projeto de lei apresentado nesta segunda-feira abre a possibilidade de cortes de gastos adicionais, o que pode facilitar o cumprimento do teto.
"Esse instrumento poderoso que foi colocado no PLN 2 potencialmente resolve os problemas, porque hoje o governo não pode contingenciar [as emendas do relator] e vai passar a poder, na minha avaliação preliminar."
O economista reconhece, porém, que haverá entraves políticos para esses novos cortes.
"Vai ser necessário um contingenciamento provavelmente muito grande das emendas do relator geral, a não ser que o Executivo consiga cortar nas discricionárias dele próprio um valor que diminua essa necessidade", explica Salto.
"Politicamente, o governo vai enfrentar resistência, é claro, porque o acordo que ele fez, segundo o que está sendo noticiado, foi de manter R$ 16,5 bilhões de emendas parlamentares e 'dar' ao Congresso o BEm, o Pronampe e as despesas de saúde fora da meta de primário. Isso os parlamentares aceitaram, mas vai ser necessário cortar mais."
Segundo Salto, esse novo ajuste deve acontecer quando o governo apresentar seu próximo relatório bimestral de avaliação das receitas e despesas, previsto para maio.
Questionado se o acordo livra o presidente Jair Bolsonaro da possibilidade de ser intimado por crime de responsabilidade fiscal, Salto afirma que essa é uma avaliação jurídica que caberá ao TCU (Tribunal de Contas da União).
"Mas, de fato, existe risco. Quando existe risco, é melhor tomar as medidas para que esse risco não se materialize."
Troca de ofensas pelas redes sociais
No Twitter, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) ironizou a proposta apresentada pelo Congresso ontem.
"Vamos ver se eu entendi. Essa emenda coloca fora do teto o Programa do Bem e o Pronampe, de aproximadamente 16 bilhões, para poder sancionar a emenda de relator de 16 bilhões", escreveu o parlamentar. "É ou não é um orçamento criativo?"
"Acabou o teto de gasto e o compromisso com a meta. Arno Augustin com inveja do novo orçamento criativo", ironizou ainda o parlamentar, citando o ex-secretário do Tesouro Nacional durante o governo Dilma Rousseff.
Mais cedo, o presidente da da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), havia imputado a Maia o atraso na aprovação do Orçamento para 2021.
"O orçamento desse ano só foi aprovado depois da eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado, justamente pelas dificuldades criadas pela gestão do meu antecessor e os seus compromissos políticos", escreveu Lira.
Ao que Maia respondeu, também no Twitter: "O presidente da Casa virou humorista. Aliás, defender a sanção do orçamento de 2021 só pode ser uma piada".
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