'Quase nada, mas tudo': o que muda para você com novo decreto das criptomoedas?
Começa a valer nesta terça-feira (20) o decreto do governo federal que determina que o Banco Central é responsável por regular, autorizar e supervisionar o mercado de criptoativos no país.
A normativa é um desdobramento da lei conhecida como Marco Legal das Criptomoedas, sancionada em dezembro de 2022 e que também entra em vigor nesta semana.
A nomeação do BC para executar essas funções é um passo para a adoção de regras e a possível taxação desses serviços no Brasil, que incluem ativos virtuais, criptomoedas e NFTs, entre outros, segundo especialistas ouvidos pela DW.
A regulação desses mercados divide opiniões entre usuários de criptoativos. Alguns consideram que trará mais segurança jurídica, enquanto outros avaliam que irá descaracterizar investimentos hoje atrativos justamente pela descentralização e por não estarem submetidos a regulações.
Caberá ao BC montar uma equipe para lidar com o tema e definir as novas diretrizes - o que não deve ocorrer do dia para noite. O decreto não dispõe sobre valores mobiliários, que seguem sob o guarda-chuva da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), como ações em bolsa ou criptoativos que venham a se caracterizar como valores mobiliários. Praticamente todos os outros ativos virtuais estarão sob a tutela do BC - incluindo as criptomoedas, entre elas bitcoin e ethereum.
O que muda com o decreto
Gustavo Inácio de Moraes, professor da Escola de Negócios da PUC-RS, explica que, como as criptomoedas não são hoje um meio de troca nem uma unidade de compra, o que o governo fez com o decreto é reconhecer os criptoativos como uma reserva de valor. Ou seja: um investimento que visa um retorno e um resgate futuro com lucratividade.
"É uma antessala para uma regulamentação", diz Moraes. "No momento que só as criptomoedas estão de fora de uma taxação nos moldes dos outros ativos, acaba-se criando um questionamento." Para ele, as novas atribuições do BC servirão para disciplinar e monitorar o mercado de criptoativos e possibilitar uma eventual tributação no futuro.
Manoel Gustavo Neubarth Trindade, professor do mestrado profissional em direito da empresa e dos negócios da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), elogia a escolha do governo pelo BC para cumprir essa missão. "É um órgão regulador muito técnico, que vem exercendo suas competências de forma muito competente", diz.
"O decreto não muda quase nada e, ao mesmo tempo, muda tudo. Isso porque ainda não traz uma regulação específica. No entanto, diz que o indicado pelo Executivo para autorizar quem pode operar ou não no mercado de ativos virtuais é o BC. Cria um funil, de que só entra nesse mercado licitamente quem o BC autorizar", explica.
Futura taxação?
Hoje são sujeitos a incidência tributária no Brasil os lucros obtidos com criptoativos quando ocorre a venda em valor total mensal superior a R$ 35 mil. No entanto, não incidem outros tributos pelo simples fato de se operar com criptoativos.
Isso pode mudar futuramente, como uma forma de o governo ampliar sua arrecadação e cumprir suas metas fiscais.
"Bitcoins e criptomoedas podem ser um mecanismo para o governo entender, primeiro, como está sendo essa movimentação de investimentos no Brasil com relação às criptomoedas e, segundo, começar a pensar mecanismos de tributação" diz Fabrício Azevedo, professor de Finanças da Universidade de Vila Velha (UVV).
Separar joio do trigo
Moraes, da PUC-RS, aponta como uma futura tarefa do BC disciplinar o mercado de ativos virtuais. No entanto, até que isso ocorra por completo, os brasileiros não estarão livres de golpes. "Começa a se criar uma inteligência para que isso seja monitorado com maior eficiência", diz.
Segundo ele, as criptomoedas, por serem algo relativamente novo, acabam sendo propícias a promessas de ganhos repentinos e fáceis. Por isso, é fundamental que o BC "separe o joio do trigo", ou seja, certifique quem são os agentes sérios.
"Num primeiro momento, isso deve encorajar mais investimentos em ativos virtuais, já que tem um acompanhamento do BC e uma segurança jurídica maior", diz.
Trindade, da Unisinos, compartilha dessa opinião. "Quando não há uma regulação, passa-se a impressão de que se trata de terra de ninguém. Então, quando começa a haver sinalização de que existe uma regulação estatal, no mínimo aquilo já é reconhecido como algo lícito", diz.
Uma eventual regulação pode, por exemplo, dispor sobre a segregação de valores. Em outras palavras: as corretoras de criptoativos poderiam ser obrigadas a ter percentuais mínimos depositados em caixa para eventuais saques dos clientes.
Limites à regulação
Contudo, a própria essência das criptomoedas, que não são ligadas a um governo específico, deve impor limites ao poder do BC, segundo os especialistas ouvidos pela DW. "Não significa que o bitcoin vai ser regulamentado, mas, sim, a movimentação do real para o bitcoin", diz Azevedo.
Mas, se o BC conseguir, nessa movimentação, acompanhar quanto foi investindo em bitcoin e quando está voltando para a moeda nacional, poderá tributar esse lucro. Essa hipótese, diz Azevedo, poderia contribuir para outro comportamento: para fugir da alçada do governo, pessoas poderão comprar criptomoedas em reais, fazer negociações lucrativas e, depois, realizar a conversão para outras moedas, como o euro e o dólar, na tentativa de escapar da tributação brasileira.
Mais segurança?
Defensores da regulação argumentam que criptomoedas são propensas a serem utilizadas para fraudes, lavagem de dinheiro e negociações na deep web, uma vez que não há como rastreá-las.
Azevedo é cético quanto a essa perspectiva. "Podemos rastrear a ida, por exemplo, do real para as criptomoedas e a volta para real. Mas o que acontece lá dentro, as transações em criptomoedas, não é possível rastrear. Então, essa ideia de trazer mais segurança, é uma ideia de fachada", explica.
"Se a insegurança [do investidor] é a participação do governo, pode ser que ela seja dirimida. Mas em relação à volatilidade, essa variação de preço e a interferência desses grandes players nesse mercado, de forma alguma o governo brasileiro ou qualquer outro governo do mundo vai conseguir fazer esse controle, essa política de tentar blindar o sistema", diz.
Trindade levanta outro ponto: o que não estiver em uma corretora também não poderá ser monitorado - em outras palavras, estará fora do alcance do BC. "Uma cold wallet não está ligada à rede. Em uma analogia, seria como guardar o dinheiro embaixo do colchão", diz. "Se você tem uma cold wallet ou faz operações P2P [de pessoas para pessoa], o que pode ocorrer na deep web, não tem como o BC ou como qualquer outro órgão controlar."
Mudanças não agrada a todos
Embora haja muitos defensores da regulamentação, Azevedo aponta que alguns investidores não veem com bons olhos a entrada do governo no tema. "Mexe um pouco com um sistema de movimentação financeira que segue os princípios do que era a ideia inicial do bitcoin, que é ter uma moeda decentralizada, que não siga nenhuma regra, nenhuma normatização, com relação a governos", diz.
Ele lembra que parte usa as criptomoeadas como uma forma de fazer movimentações financeiras à margem da taxação. "Isso tira um pouco do interesse daquele investidor que busca alternativas de investimentos que sejam atrativas, mas não tenham aquela mordida do governo", diz.
Mas, conforme as criptomoedas ganham mais usuários e expandem seu escopo, fica cada vez mais difícil elas manterem o viés "anarquista" de sua concepção inicial e se manterem à margem de uma regulação, pondera Trindade.
Ele menciona que, se por um lado a regulação trará maior segurança jurídica e pode atrair mais investimentos de pessoas que não se sentiam, até então, seguras, por outro haverá aumento de custos maior segurança jurídica, que pode trazer mais investimentos de pessoas que não se sentiam, até então, seguras.
Real digital
Outro aspecto do decreto mencionado entre os especialistas é que ele facilita o caminho para uma eventual moeda brasileira 100% virtual, o real digital, que já está em discussão.
"Acredito que isso é um pouco da fase de testes para começar a entender essa política e essa movimentação. Testar a dinâmica do mercado, entender como o povo brasileiro se comporta em relação a essas movimentações", diz Azevedo.
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