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Agências de publicidade realizam debates e lançam cartilha contra o assédio

Getty Images
Imagem: Getty Images

Renato Pezzotti

Colaboração para o UOL, em São Paulo

31/12/2018 04h00

Uma pesquisa divulgada no final do ano passado (2017) mostrou que, de 1.400 profissionais do mercado de publicidade entrevistados, 99% afirmaram ter conhecimento de casos de assédio moral ou sexual em empresas de comunicação. Entre as mulheres, 90% afirmaram já ter sido vítimas em algum momento. 

O resultado da pesquisa serviu como base para uma série de ações do Grupo de Planejamento. Formada por planejadores de diversas agências de publicidade do Brasil, a entidade foi a responsável pelo estudo em parceria com o Instituto Qualibest. 

Um ano depois de divulgada a pesquisa, o que realmente foi feito pelas agências de publicidade?

Debates e cartilha

Em diversas agências, foram organizados grupos de discussão, a maioria montada pelos próprios funcionários. A partir desses encontros, agências como DPZT, Fbiz, Live, Mutato e Wunderman realizaram ações como palestras com advogados e psicólogos. A Wunderman ainda desenvolveu uma cartilha, aberta para todo o mercado e disponível para download no site 'Agências sem Assédio'.

"Declaramos tolerância zero ao assédio, abrimos um canal de denúncias e resolvemos criar um manual, a primeira iniciativa de uma agência neste sentido. O material foi produzido de forma coletiva e colaborativa", disse Pedro Reiss, presidente da Wunderman. "Por um lado, tenho orgulho de ter disponibilizado essa cartilha para o mercado. Por outro, isso me preocupa porque o manual é só uma das coisas que deve ser feita, e que nasceu depois de muitos meses de debates sobre o tema. Temos que ter um movimento de diálogo e conscientização que não pode parar um minuto sequer."

Segundo a publicitária Ana Paula Cortat, conselheira do Grupo de Planejamento e fundadora da Hybrid Colab, o assédio precisa ser uma pauta da presidência das empresas, antes de ser uma pauta do setor de recursos humanos, porque o envolvimento da presidência gera exemplo, crença e engajamento. Para ela, o resultado da pesquisa foi importante porque o assunto, pela primeira vez, entrou na pauta de discussões dos mais altos escalões das empresas, nos quais líderes se comprometeram com iniciativas de combate à prática do assédio. 

"Temos certeza de que as vozes que defendem a ideia de que a discussão de assédio é uma 'conversa sobre vitimização' se calarão, envergonhadas. Ainda vai demorar, mas estamos a caminho de uma realidade mais generosa, justa e humana", declarou Ana Paula.

Campanha inglesa pode ser exemplo

Uma das iniciativas que pode servir de exemplo para o Brasil é o projeto britânico #timeto, lançado em março deste ano. O manifesto da organização diz que "o assédio sexual simplesmente não deveria acontecer. Nós nunca devemos aceitar esse comportamento. Não devemos criar um ambiente que promova esse comportamento. Para acabar com o assédio sexual para sempre, devemos começar em nosso próprio quintal".

O #timeto é capitaneado pela Associação de Publicidade Inglesa ("Advertising Association UK", en inglês) e pelo WACL ("Women in Advertising and Communications", ou mulheres na publicidade e na comunicação) um núcleo de mulheres que trabalham na publicidade. O objetivo é acelerar a igualdade de gênero --o projeto possui um estudo e um código de conduta a ser seguido pelas empresas que assinam o manifesto. Hoje, são mais de 160 companhias.

"A iniciativa é extremamente positiva porque, além de levantar problemas, também indica soluções", disse André Chaves, criador do Papel & Caneta, coletivo sem fins lucrativos que une líderes da indústria em prol de causas sociais.

Neste ano, o Papel & Caneta foi o responsável pelo lançamento da campanha "Meu Melhor Defeito", que destacou mais de 30 problemas da indústria da publicidade, dentre eles, o assédio moral, jornadas prolongadas, racismo e falta de representatividade nas campanhas. Em um perfil no Instagram, profissionais compartilham depoimentos sobre como seus defeitos podem ser, na verdade, uma força contra questões que não são debatidas nas empresas.

Veja o filme de divulgação da campanha:

 

Pesquisa e "problema cultural"

A pesquisa "Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo" foi divulgada em novembro de 2017. 

Os resultados mostraram o quão grave é a questão do assédio moral e sexual no mercado da propaganda. Dos 1.400 profissionais ouvidos, sendo 68% mulheres e 32% homens que trabalham em agências, produtoras e veículos, 99% afirmaram ter conhecimento de casos de assédio moral ou sexual em empresas de comunicação. Entre as mulheres, 90% afirmaram já terem sido vítimas em algum momento. 

"O assédio é um problema cultural, que envolve crenças equivocadas --ora baseadas na ideia de que a pressão molda melhores profissionais, ora baseadas na ideia de que a submissão a horas de trabalho ininterruptas tem como consequência natural o sucesso", disse a publicitária Ana Paula Cortat. "Em um evento recente, assistimos a uma jovem empreendedora de sucesso relatar para 300 jovens que trabalhava com 42° de febre e que isso é 'ser empreendedora'. Esse tipo de comportamento alimenta uma cultura perversa e precisa acabar."

Os números do estudo apontaram para a necessidade de mais atenção das lideranças das empresas ao tema. Com esse objetivo em vista, Ana Paula e o também publicitário Ken Fujioka comandaram uma peregrinação por agências de publicidade, além de participarem de eventos do setor, exibindo os resultados da pesquisa. 

Eles fizeram mais de 60 apresentações em empresas e ouviram diversos relatos de pessoas que ainda não haviam tido a coragem de falar. "A cultura do assédio não é exclusiva do mercado publicitário, mas os números trazidos pela pesquisa estão muito acima de qualquer média nacional. É preciso encarar isso de frente, por meio da organização do mercado. Precisamos buscar soluções coletivas que ajudem a construir um sistema seguro e confiável", declarou Ana Paula.