Gás: proposta de Bolsonaro estimula mercado ilegal e pode aumentar preço
Em live na última quinta-feira (19), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sugeriu que a venda de GLP, o gás de cozinha, seja feita diretamente pelas distribuidoras. Segundo o presidente, os consumidores poderiam "pegar um caminhãozinho" e levar, "uma vez por mês, 100 botijões" para as "comunidades".
Com essa medida e a isenção do ICMS (imposto cobrado pelos estados), de acordo com Bolsonaro, o preço do botijão ficaria em, no máximo, R$ 60 - bem menos do que os R$ 93,45 cobrados hoje, em média.
Segundo especialistas, porém, a ideia estimula a revenda ilegal de gás de cozinha, especialmente nos lugares de difícil acesso. Na prática, os tais "caminhõezinhos" atuariam como revendedores informais, criando novos monopólios.
Sem fiscalização, a tendência é de que esses revendedores cobrem o preço que desejarem sobre o gás - ou seja, poderia haver, inclusive, aumento de preço do botijão para os consumidores.
Distribuidoras não estão em todos os lugares
Hoje, o gás de cozinha que sai da Petrobras ou de importadores é comprado por distribuidoras, que repassam o produto aos revendedores ou fazem a venda direta às residências.
Segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), o Brasil tem 20 distribuidores autorizados de GLP. Essas empresas têm 176 bases de distribuição autorizadas em todo o país, concentradas, principalmente, nas regiões Sul e Sudeste. O número de revendas autorizadas pela ANP é bem maior, de quase 60 mil.
William Nozaki, coordenador técnico do Ineep (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, ligado à Federação Única dos Petroleiros), afirma que a falta de pulverização das distribuidoras seria um primeiro problema na proposta do presidente.
Do ponto de vista prático, é uma ideia de execução praticamente impossível. O primeiro entrave é logístico: não há distribuidora em todos os lugares para atender à demanda.
William Nozaki
Intermediários informais
Com isso, continuaria a haver lugares em que o gás teria de ser levado aos consumidores por intermediários - mas, na nova configuração, eles seriam informais, isto é, os "caminhõezinhos" mencionados pelo presidente.
Isso criaria um problema de fiscalização. Rosemarie Bröker Bone, coordenadora do Laboratório de Economia do Petróleo da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que, mesmo hoje, com as revendedoras autorizadas, a ANP não tem capacidade para fiscalizar as condições de venda do gás em todo o Brasil.
A Agência não consegue ir a todos os lugares do país para verificar não só se o preço é justo, mas também se há qualidade e segurança do botijão de gás. É por isso que existe o programa Gás Legal, para que os próprios consumidores denunciem revendedores com práticas inadequadas.
Rosemarie Bröker Bone
Segundo Nozaki, do Ineep, a retirada da figura do revendedor autorizado traria novos atores, informais e ilegais, no processo de venda.
Quem tiver esse 'caminhãozinho' vai cobrar sua margem de lucro. Na prática, isso pode criar novos cartéis e monopólios em lugares menores e mais distantes. É um ótimo nicho, por exemplo, para locais em que há milícias.
William Nozaki
O preço seria menor?
Essa criação de novos monopólios deve trazer até aumento de preço: sem concorrência e fiscalização, os revendedores ilegais poderiam cobrar o preço que bem entendessem sobre o botijão, segundo especialistas.
E, mesmo na venda legalizada, pelas distribuidoras, não haveria garantia de que a redução de preço ocorreria na proporção indicada por Bolsonaro.
Primeiro porque, de acordo com dados da ANP, os setores de distribuição e revenda não são responsáveis pelo maior peso no preço do GLP. As informações mais recentes disponibilizadas pela Agência, de abril de 2021, apontam que a composição do preço médio do botijão era a seguinte:
- Preço total ao consumidor: R$ 85,49
- Preço do produtor de GLP (Petrobras ou importador): R$ 42,30 (49,5%)
- Margem bruta de distribuição e revenda (custos + lucros): R$ 31,01 (36,3%)
- Tributos estaduais (ICMS): R$ 12,19 (14,3%)
- Tributos federais: R$ 0
Agora, após aumentos realizados pela Petrobras, o preço médio do botijão está ainda maior: levantamento da ANP referente à semana de 8 a 14 de agosto aponta que o gás está custando R$ 93,45. O valor é uma média, ou seja, há lugares em que o botijão pode estar mais caro ou mais barato.
Novos custos
Há ainda outro fator além da composição do preço: se as distribuidoras passassem a responder integralmente pela entrega dos botijões aos consumidores, elas teriam novos custos, que acabariam no preço do produto final.
Com a extinção da figura do revendedor oficial, existe a possibilidade de redução do preço [no mercado legalizado]. Mas todo o valor que hoje corresponde à revenda não será diminuído do preço final, já que o distribuidor terá novos custos.
Rosemarie Bröker Bone
Para Nozaki, do Ineep, as propostas de Bolsonaro são apenas uma forma de desviar a atenção do principal fator que tem pressionado o preço: a política da Petrobras, que reajusta derivados do petróleo de acordo com o preço do barril no mercado internacional, vendido em dólares.
É inequívoco que a causa do aumento do preço é a política de preços da Petrobras. Uma alternativa para não mudar essa política, que é uma diretriz do governo, seria oferecer um vale para famílias mais pobres. Mas o governo tem se preocupado em se desobrigar de resolver problemas, atacando outros atores.
William Nozaki
Sindigás defende debate sobre programa social
Em nota, o Sindigás (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de GLP) afirmou que a distribuição e a revenda são "igualmente importantes" para garantir a disponibilidade de gás de forma "eficiente e segura" em todos os municípios do país.
A entidade defende que a discussão sobre um programa social, como o vale gás, é "oportuna e pertinente". Segundo o Sindigás, o ideal é que haja garantia de que o dinheiro repassado a famílias mais pobres seja atrelado à compra do botijão, "assegurando um incentivo ao combate do uso de lenha".
A nota afirma ainda que o valor do ICMS sobre o GLP "é alto, na contramão da relevância social do produto". "No entanto, entendemos que a avaliação da tarifa a ser cobrada sobre o GLP cabe ao governo dos Estados", diz o texto.
ANP e governo não se posicionam
A Secretaria Especial de Comunicação do Governo Federal não respondeu ao pedido de posicionamento feito pelo UOL. A ANP disse que não comentaria o assunto.
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