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Mesmo com auxílio de R$ 600, preciso vender itens pessoais para ter comida

Jacqueline Costa e o marido são ambulantes em Brasília. Mas, com renda familiar insuficiente, ela tem vendido itens pessoais para comprar comida e pagar as contas - Weudson Ribeiro/UOL
Jacqueline Costa e o marido são ambulantes em Brasília. Mas, com renda familiar insuficiente, ela tem vendido itens pessoais para comprar comida e pagar as contas Imagem: Weudson Ribeiro/UOL

Weudson Ribeiro

Colaboração para o UOL, em Brasília

21/08/2022 04h00

No começo da pandemia, foi a panela elétrica. Depois, a pipoqueira que usava para preparar lanches para a filha de 15 anos. Com renda familiar de menos de R$ 1.500 por mês, a trabalhadora ambulante Jacqueline Costa, 48, afirma que para conseguir fazer as compras do mercado e pagar as contas de aluguel, água, luz e internet teve de vender objetos pessoais na pandemia de covid-19. Em 2020, chegou a morar de favor na casa de parentes.

Pesquisa Datafolha mostra que 17% das famílias brasileiras tiveram de fazer isso. "Há mais ou menos um mês, juntei algumas peças de roupas do meu marido, que também é trabalhador informal, vendi e tive um retorno de R$ 60. É ruim, mas já tivemos de vender coisas pessoais para não passar fome", conta.

Beneficiária do Auxílio Brasil de R$ 600, ela ajuda a manter uma casa com mais três pessoas. "O que mais tem pesado no orçamento nos últimos meses é a comida. A gente não faz mais a feira, que era a cada duas semanas. Agora, eu só compro o básico, conforme a comida vai acabando."

O gás de cozinha é outro problema, diz Jacqueline. O preço disparou durante a crise sanitária e se agravou com a invasão da Rússia na Ucrânia, levando o governo federal a criar um auxílio gás de R$ 110. "Em Goiás, onde eu moro, o preço do botijão muda quase toda semana. O gás leva de dois a três meses para acabar —e quase sempre precisamos pegar dinheiro emprestado para comprar. O auxílio vai dar um alívio, mas não resolve o problema", afirma.

Problema causado pela insegurança alimentar

Na avaliação do economista Kleber Cabral, a venda de itens pessoais para pagar despesas básicas é um reflexo da insegurança alimentar —problema que, segundo ele, afeta o hábito de consumo das pessoas, que passam a adiar pagamentos de dívidas para não deixar faltar comida à mesa.

"Isso gera um efeito bola de neve na economia. É um retrato da situação dramática em que vivem muitas famílias brasileiras atualmente, com renda corroída sobretudo pela inflação dos alimentos. Para os mais pobres e para a classe média, a alta de preços dos alimentos causou mudanças drásticas no orçamento doméstico, a ponto de tantas famílias estarem sendo forçadas a vender seus bens para se alimentar", comenta.

Vendeu a cama para pagar despesas

O professor de música Tiago Barros, 33, mudou-se de São Luís (MA) para a capital de São Paulo pouco antes de a pandemia começar, em 2019, para trabalhar. A ideia era ter um emprego fixo e fazer bicos dando aulas particulares para completar a renda.

No ano seguinte, com o lockdown e as medidas de distanciamento social, o salário fixo que recebia numa escola municipal do Estado não estava pagando o elevado custo de vida na cidade. Resultado: Tiago pediu as contas da rede municipal e voltou para a terra natal, onde busca novas oportunidades.

"O salário de R$ 3.830 só estava dando para pagar contas. O vale-refeição não dava para fazer as compras do mês inteiro. Então, para comer, a primeira coisa que vendi foi a cama de casal que tinha acabado de comprar. Comecei a dormir em um sofá-cama. Fui vendo coisas que eu não usava mais e negociando em brechós, sites especializados ou anunciando no Twitter. No fim das contas, voltei para o Nordeste. Mas, sem trabalho e morando na casa dos pais, continuo vendendo objetos pessoais e aparelhos do trabalho para ajudar nas despesas de casa. Vendi um drone há um mês e uma câmera fotográfica há dois, o que já deu um alívio."

No Brasil, 30% da população brasileira passa por algum nível insegurança alimentar (leve, moderada ou grave), segundo relatório da ONU (Organização das Nações Unidas). Os dados mostram que 61,3 milhões de pessoas não tinham garantia de alimentação de 2019 a 2021. Desse total, 15,4 milhões se encontravam em situação de fome.

Endividamento das famílias piorou em 3 anos

Dados da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) mostram que 78% dos consumidores estavam endividados em julho deste ano, e 29% deles tinham contas atrasadas. Esse cenário mostra uma piora em relação ao mesmo período de 2019, último ano antes da pandemia, quando o endividamento foi de 64,1%.

Na avaliação do professor de economia Walcir Soares, a aceleração da inflação desencadeou um ciclo de aumento de juros, o que desestimulou o consumo e os investimentos.

"Mesmo a melhora do emprego não tem conseguido reduzir a inadimplência devido à alta dos preços, já que ao recuperar o emprego, o indivíduo precisa se preocupar ainda com suprir necessidades básicas como alimentação, transporte e moradia. Portanto, a inadimplência está fortemente ligada à insegurança alimentar", declara.

Ele lembra que o Brasil não havia se recuperado da crise econômica anterior à pandemia e destaca que programas de transferência de renda como o Auxílio Brasil são importantes dentro de uma política de assistência social, sobretudo em períodos de crise econômica e de renda como a atual, somada à forte inflação de alimentos.

"As restrições desse período, somadas às crises energéticas, fizeram com que a alta dos preços tivesse diferentes causas, que resultaram em uma inflação fora do controle. Do ponto de vista econômico, políticas que mantenham emprego e os preços estáveis mesmo em cenários de crise se justificariam. Programas sociais devem sempre dar condições àqueles que realmente precisam, de modo a não desestimular o trabalho ou a qualificação."