Precatório é bomba deixada por Bolsonaro, mas governo escolhe solução ruim
O governo parece não ter escolhido o melhor caminho para dar solução aos precatórios que o governo de Jair Bolsonaro deixou de pagar, a partir de 2022, com base na aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) articulada no Congresso pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes.
Para não ter de alterar a meta de déficit primário zero em 2024, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está propondo polêmicas mudanças na contabilidade pública. Especialistas em finanças públicas sugerem que o melhor é quitar os precários acumulados sem alterar as regras vigentes e aceitar meta de déficit primário acima de zero no ano que vem.
Calote nos precatórios
A PEC dos Precatórios é uma das maiores bombas deixadas nas contas públicas pelo governo Bolsonaro. A alteração constitucional aprovada no Congresso prevê um limite anual para a quitação de precatórios, com o pagamento do excedente, acrescido de juros, acumulado ao longo dos anos em 2027.
Precatórios são ordens de pagamento em questões julgadas procedentes pela Justiça em caráter definitivo, que devem ser cumpridas por entes públicos. Ao determinar um limite anual de pagamento, a emenda constitucional instituiu o que popularmente é conhecido como calote.
Esta foi apenas uma das muitas manobras -- e calotes -- operadas por Guedes, que acabaram resultando em superávits fiscais fictícios, levando alguns economistas de viés mais liberal a concluir que a herança do governo Bolsonaro na área fiscal foi positiva. À luz do que vem à tona agora, essa avaliação é quase risível.
Bomba-relógio fiscal
De acordo com informações do governo Lula, o estoque de precatórios não quitados somava, em setembro, R$ 65 bilhões. A previsão oficial é de que a conta suba para R$ 95 bilhões, em 2024. Nas estimativas oficiais, o volume de débitos acumulados até 2027, se a regra introduzida pela emenda constitucional não for alterada antes do fim do prazo, chegaria a R$ 250 bilhões.
Pagar o que deve e desmontar essa bomba-relógio deixada por Bolsonaro o quanto antes é, portanto, uma decisão acertada. A questão é como fazer isso — e a saída apresentada com o recurso ao STF (Supremo Tribunal Federal), para quem conhece contas públicas, não é a melhor.
Reclassificação de despesas
Na representação da AGU (Advocacia Geral da União) ao STF, o governo sustenta que a emenda dos precatórios é inconstitucional. Com a derrubada do dispositivo legal vigente, pretende quitar os precatórios acumulados por crédito extraordinário — como foi feito, por exemplo, na pandemia, com os gastos para enfrentamento da pandemia.
Além disso, o governo deseja que o STF avalie seu argumento de que os juros dos precatórios devem ser considerados despesas financeiras, ficando, por isso, separados do pagamento do principal, estes sim classificáveis como despesas primários. Os pagamentos de despesas financeiras, como, por exemplo, ocorre com os juros da dívida pública, não são contabilizados como gastos primários.
Com a reclassificação de despesas, a intenção do governo é resolver o problema sem que parte dos gastos para quitar as dívidas sejam contabilizadas como primários, para não pressionar ainda mais a meta de déficit fiscal primário zero em 2024 e nos anos seguintes. Não custa lembrar que, somente as despesas com juros dos precatórios, se os pagamentos seguirem os limites estabelecidos na emenda constitucional em vigor, a parcela de juros, em 2024, alcançará pelo menos R$ 30 bilhões.
Contabilidade criativa?
Se conseguir alterar, permanentemente, a forma como as despesas são contabilizadas nas contas públicas, separando as despesas com juros dos valores principais das obrigações a serem pagas, esse volume de recursos entraria na contabilidade pública como despesa financeira, ficando de fora do conjunto dos gastos primários. Os recursos seriam pagos, mas sem trazer pressões adicionais ao resultado primário.
Em sua argumentação, em favor da segregação dos valores, o governo alega que, anteriormente, o STF já decidiu que juros têm natureza autônoma em relação ao principal. Entre os mais críticos ao governo entre especialistas em questões fiscais, no entanto, a pretensão do governo está sendo classificada como "contabilidade criativa", numa alusão às manobras na área fiscais que serviram de motivação para o impeachment, em 2016, da então presidente Dilma Rousseff.
A avaliação de que o governo está propondo uma contabilidade criativa é exagerada. O que o governo propõe não é uma manobra pontual para camuflar gastos, mas uma regra permanente e transparente de classificação de despesas. A representação ao STF também deixa claro que só pretende, eventualmente, adotá-la com o respaldo da Corte.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberO economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV-Ibre, lembra que não há lei no país impondo regras de classificação de despesas, mas observa que o Brasil segue padrões internacionais e estes não contemplam a classificação dos juros de operações que não sejam de crédito como despesas financeiras.
"Para ser considerada despesa financeira, é preciso que a origem tenha sido uma operação de crédito. Precatório não é operação de crédito. Um imposto atrasado também incorre em juros e quando arrecadado é classificado como receita primária, o mesmo se dando com qualquer contrato com pagamento em atraso, que cobra juros, mas continua sendo despesa primária". Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV-Ibre.
Na opinião do economista, em lugar de alterar a contabilidade, teria sido mais fácil e correto prever a retirada das despesas com juros das despesas primárias quando da elaboração do novo arcabouço fiscal. Diante do impasse, Pires se alinha entre os que consideram menos danoso alterar a meta fiscal zero estabelecida para 2024.
Se, como estratégia, a manutenção da meta de déficit zero é uma maneira de tentar forçar seu cumprimento, é fato que, diante das inúmeras pressões fiscais, têm crescido as desconfianças em relação ao seu cumprimento. O aumento das suspeitas de que o objetivo é inexequível acaba contribuindo para a ampliação de incertezas, contribuindo para deteriorar expectativas sobre a evolução da economia. A mudança da meta, com a aceitação de algum nível de déficit, mas com melhores possibilidades de vir a ser cumprido, é uma alternativa que, a esta altura, reduziria incertezas e, em lugar de piorar, poderia até melhorar essas expectativas.
[
Deixe seu comentário